domingo, 4 de outubro de 2009

Resenha: Interesses, atores e a construção histórica da agenda social do Estado no Brasil (1930/90) - Marcus Melo

Este artigo analisa a construção da agenda social no Brasil durante o período de 1930 a 1990. Para tanto, Marcus Melo considera a formação dos principais atores coletivos que agregam interesses sociais (burocracias públicas, sindicatos e partidos) em um momento de emergência do Welfare State.

Sua tese principal é que as políticas sociais surgiram no Brasil a partir da necessidade de construção de identidade dos atores coletivos, em última instância, coincidiu com a necessidade de construção do Estado Nacional e sua identidade.

A literatura apontava, antes da emergência do Welfare State no mundo, a contradição existente entre democracia e economia de mercado. Porém, como argumentou Offe, o Welfare State conseguiu controlar tal conflito ao admitir um limite para a mercantilização do trabalho. Com isso, abriu-se uma brecha no laissez-fairianismo para a possibilidade de intervenção do Estado na economia, ou em outras palavras, a regulação do trabalho foi o início e a base para a emergência do Welfare State.

O Brasil se incluiu neste contexto embora apresente suas peculiaridades, que podemos observar: a reivindicação por participação no Brasil, diferentemente dos países europeus, surgiu antes da liberalização política, isto resultou na utilização das políticas sociais como meio de os atores coletivos ampliarem sua participação. Não apenas isso, as políticas sociais também serviram como símbolos a partir dos quais os grupos configuraram suas identidades coletivas. Melo aponta que, como conseqüência deste fato, a política social não surgiu no Brasil como resultado da democracia, pelo contrário, não houve controle democrático na decisão da pauta social.

Este fato foi bem expresso por Santos ao elaborar o conceito de “cidadania regulada” definido esta em função da ocupação do indivíduo. Isto significa que direitos e deveres de cidadão são atribuídos aos trabalhadores cujas ocupações são reconhecidas e reguladas pelo Estado.

No Brasil, a emergência da política social correspondeu ao fortalecimento da burocracia que incorporava trabalhadores no processo de construção da identidade nacional, de uma cidadania nacional (mesmo que regulada).

Utilizando a conceituação de Marshall, pode-se concluir que a cidadania social no Brasil antecedeu a cidadania política uma vez que o direito ao voto surgiu posteriormente a ela e a reivindicação por democratização das decisões apenas se tornou forte nos anos 70.

Sucintamente, a peculiaridade do Estado Brasileiro em relação aos países democráticos da Europa é que, como demonstrou Touraine, as identidades coletivas não se construíram unicamente a partir das classes sociais, mas também em contraposição à dominação estrangeira e a partir da ação coletiva voltada para a integração nacional.

Dos anos 30 a 90 a agenda social sofreu diversas alterações conforme o campo conceitual se deslocou determinando assim novas questões na pauta das políticas sociais.

Melo subdivide este período histórico em cinco momentos de acordo com as respectivas mudanças conceituais que orientaram a pauta das políticas sociais em cada um destes períodos.

De 1930 a 1945, um período caracterizado pelo corporativismo, a idéia orientadora era a de incorporação dos trabalhadores. O conceito de cidadania regulada de Santos corresponde a este período segundo o qual a política social não visava ser redistributiva nem compensatória, e sim, visava a integração da massa ao Estado (Novo). Como exemplo podemos falar da política de habitação que em princípio era possível apenas aos membros contribuintes dos IAPS (Institutos de Aposentadoria e Pensão).

Entre 1946 a 1964, os objetivos da política social mudaram para priorizar a industrialização do país, embora o princípio de regulação do trabalho permanecesse. Entrou em pauta neste período a questão da equidade, uma vez que a aceleração do crescimento econômico trazia como conseqüência o aumento da desigualdade. Por isso, o princípio da redistribuição entrou na pauta das decisões quanto às políticas sociais.

O Estado populista é visto tanto pela elite quanto pela esquerda como o “sujeito da acumulação“ assim como o “agente da distribuição” tendo o papel de conter os conflitos entre as classes.

Utilizando a política de habitação como exemplo, tem-se que nesse período essa questão passou a articular-se através das reformas de base, via reforma urbana, visava-se integrar a grande população marginalizada. Por causa da crise da cidade ser como uma conseqüência da crise no campo, a agenda da política habitacional torna-se uma não-agenda.

Nos anos que se seguiram à ditadura militar, entre 1966 e 1973, a importância anteriormente dada ao bem estar dos trabalhadores foi posta em segundo plano e a questão da acumulação versus distribuição passou a ser vista como um jogo de soma zero, ou seja, a ampliação de uma só é possível às custas da outra. O debate em torno das políticas públicas se reduzia à escolha entre desenvolvimento econômico ou distribuição de renda. Neste período a crítica que se fazia ao regime se baseava no não reconhecimento das políticas públicas implementadas pelo regime por não serem verdadeiras políticas sociais uma vez que não visavam a redistribuição de renda e priorizavam a acumulação. Nesse período, no caso da política habitacional, via-se uma enorme intervenção do Estado com um projeto de modernização, e a grande crítica era que dava-se pouca ou quase nenhuma prioridade à questão da habitação.

De 1974 a 1983, em um contexto de aprofundamento do desequilíbrio externo, crise fiscal e transição política, passou-se a analisar a implementação das políticas sociais e sua eficácia social. A crítica se dá não tanto sobre os efeitos negativos desta política, mas sim ao seu caráter burocrático e ineficaz, ao seu modus operandi. Notou-se a necessidade de controle democrático sobre as decisões e a crítica se voltou para os mecanismos de representação de interesses e participação dos atores sociais. É apenas no final dos anos 80 que se dá a liberalização política consolidando a democracia no Brasil.

Nesse período tem-se uma grande burocratização e a ineficiência do formato institucional dos programas de habitação, onde os recursos utilizados são privatizados, tendo ausência de participação. Deseja-se a participação e a autogestão, pois são democráticas e eficientes.

Houve mais um deslocamento no eixo de análise das políticas sociais nos anos 80. Quando foi instalada a Constituinte, o debate se voltou para as formulações do Legislativo. A isso correspondeu a perda de capacidade do governo em implementar as políticas públicas suscitando, assim, novas críticas, agora ao novo regime. A nova República não se mostrava mais eficiente que o regime anterior.

Nesse período tem-se uma ampla discussão pública em torno da política urbana, porém, os projetos de reforma não deram certos, pois se caracterizaram por descontinuidades e fragmentação das alianças (já que esses programas visavam a sustentação política).

Melo argumenta que tal estagnação das políticas sociais na Nova República no início dos anos 90 se deveu ao acúmulo de demandas herdadas da ditadura assim como de novas demandas que se somaram àquelas.

Novamente, dá-se no Brasil o problema de reconstruir identidades coletivas, agora numa democracia. Em um contexto como este, a reivindicação por participação se torna mais importante do que a própria participação e a crítica se deslocou no início da década de 90 para a relação ente Estado e sociedade. O que estava em jogo a partir de então era a redefinição do papel do Estado.

Resenha Políticas Públicas – ano 2003

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