sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A Guerra civil na Espanha – (1936 – 1939)

Introdução

A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) foi o acontecimento mais traumático que ocorreu antes da 2ª Guerra Mundial. Nela estiveram presentes todos os elementos militares e ideológicos que marcaram o século XX. De um lado se posicionaram as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas às classes e instituições tradicionais da Espanha (O Exército, a Igreja e o Latifúndio) e do outro a Frente Popular que formava o Governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da democracia.
Para a Direita espanhola tratava-se de uma Cruzada para livrar o país da influência comunista e da franco-maçonaria e restabelecer os valores da Espanha tradicional, autoritária e católica. Para tanto era preciso esmagar a República, que havia sido proclamada em 1931, com a queda da monarquia.
Para as Esquerdas era preciso dar um basta ao avanço do fascismo que já havia conquistado Itália (em 1922), a Alemanha (em 1933) e a Áustria (em 1934). Segundo as decisões da Internacional Comunista, de 1935, elas deveriam aproximar-se dos partidos democráticos de classe média e formarem uma Frente Popular para enfrentar a maré de vitorias nazi-fascistas. Desta forma Socialistas, Comunistas (estalinistas e trotskistas) Anarquistas e Democratas liberais deveriam unir-se para chegar e inverter a tendência mundial favorável aos regimes direitistas.
Foi justamente esse conteúdo, de amplo enfrentamento ideológico, que fez com que a Guerra Civil deixasse de ser um acontecimento puramente espanhol para tornar-se numa prova de força entre forças que disputavam a hegemonia do mundo. Nela envolveram-se a Alemanha nazista e a Itália fascista, que apoiavam o golpe do General. Franco e a União Soviética que solidarizou-se com o governo Republicano.

Antecedentes

A Espanha ainda nos 30 era um anacronismo histórico. Enquanto a Europa ocidental já possuía instituições políticas modernas, no mínimo há um século a Espanha era um oásis tradicionalista, governada pela "trindade reacionária" (O Exército, a igreja católica e o Latifúndio), que tinha sua expressão última na monarquia burbônica de Afonso XIII. Vivia nostálgica do seu passado imperial grandioso, a ponto de manter um excessivo número de generais e oficiais (1 general para cada 100 soldados, o maior percentual do mundo), em relação às suas reais necessidades. A igreja, por sua vez, era herdeira do obscurantismo e da intolerância dos tribunais inquisitoriais do santo Oficio, era uma instituição que condenava a modernidade como obra do demônio. E no campo, finalmente, existiam de 2 a 3 milhões de camponeses pobres, los braceros, submetidos às práticas feudais e dominados por uns 50 mil hidalgos, proprietário de metade das terras do país.
Como resultado da grave crise econômica de 1930 (iniciada pela quebra da bolsa de valores de N. Iorque, em 1929), a ditadura do General. Primo de Rivera, apoiada pelo caciquismo (sistema eleitoral viciado que sempre dava seus votos ao governo), foi derrubada e, em seguida, caiu também a monarquia. O Rei Afonso XIII foi obrigado a exilar-se e proclamou-se a República em 1931, chamada de "República de trabajadores".
A esperança era que doravante a Espanha pudesse alinhar-se com seus vizinhos ocidentais e marchar para uma reforma modernizante que separasse estado e igreja e que introduzisse as grandes conquistas sociais e eleitorais recentes, além de garantir o pluralismo político e partidário e a liberdade de expressão e organização sindical. Mas o país terminou por conhecer um violento enfrentamento de classes, visto que à crise seguida por uma profunda depressão econômica, provocando a frustração generalizada na sociedade espanhola.

Os partidos políticos

As esquerdas, obedecendo a uma determinação do Comintern (a Internacional Comunista controlada pela URSS), resolveram unir-se aos democratas e liberais radicais num Fronte Popular para ascender ao poder por meio de eleições. As esquerdas espanholas estavam divididas em diversos partidos e organizações, entre as quais:

PSOE (Partido Socialista Obreiro Espanhol) Socialistas
PCE (Partido Comunista Espanhol) Comunistas
POUM (Partido Obreiro da Unificação Marxista) Comunistas-trotsquistas
UGT (União Geral dos Trabalhadores) Sindical Socialista
CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores) Sindical Anarquista
FAI (Federação Anarquista Ibérica) Anarco-Sindicalista

Elas aliaram-se com os Republicanos (Ação republicana e Esquerda republicana) e mais alguns partidos autonomistas (Esquerda catalã, os galegos e o Partido Nacional Basco). Essa coligação, venceu as eleições de fevereiro de 1936, dominando 60% das Cortes (O parlamento espanhol), derrotando a Frente Nacional, composta pelos direitistas.
A Direita por sua vez estava dividida agrupada na CEDA (Confederação das Direitas autônomas), no partido agrário, nos monarquistas e tradicionalistas (carlistas) e finalmente pelos fascistas da Falange espanhola (liderados por José Antônio).

O golpe militar e a guerra civil

O clima de turbulência interna motivado pela intensificação da luta de classes, especialmente entre anarquistas e falangistas que provocou inúmeros assassinatos políticos contribui para criar uma situação de instabilidade que afetou o prestígio da Frente Popular. Provavelmente as desavenças internas dos integrantes do Fronte Popular mais tarde ou mais cedo fariam com que o governo desandasse. Mas a direta espanhola estava entusiasmada com o sucesso de Hitler (aplastamento das esquerdas na Alemanha, remilitarização da Renânia, etc...) que se somou ao golpe direitista de Dolfuss na Áustria, em 1934. Derrotados nas eleições os direitistas passaram a conspirar com os militares e a contar com o apoio dos regimes fascistas (Portugal, com Oliveira Salazar, Alemanha com Hitler e a Itália de Mussolini). Esperavam que um levante dos quartéis, seguido de um pronunciamento dos generais, derrubariam facilmente a República.
No dia 18 de julho de 1936, o General. Francisco Franco insurge o Exército contra o governo republicano. Ocorre que nas principais cidades, como a capital Madri e Barcelona, a capital da Catalunha, o povo saiu as ruas e impediu o sucesso do golpe. Milícias anarquistas e socialistas foram então formadas para resistir o golpe militar. O país em pouco tempo ficou dividido numa área nacionalista, dominado pelas forças do General. Franco e numa área republicana, controlada pelos esquerdistas. Nas áreas republicanas ocorreu então uma radical revolução social. As terras foram coletivizadas, as fábricas dominadas pelos sindicatos, assim como os meios de comunicação. Em algumas localidades, os anarquistas chegaram até a abolir o dinheiro.
Em ambas as zonas matanças eram efetuadas através de fuzilamentos sumários. Padres, militares e proprietários eram as vítimas favoritas dos "incontroláveis", as milícias anarquistas, enquanto que sindicalistas, professores e esquerdistas em geral, eram abatidos pelos militares nacionalistas.

A intervenção estrangeira

Como o golpe não teve o sucesso esperado, o conflito tornou-se uma guerra civil, com manobras militares clássicas. O lado nacionalista de Franco conseguiu imediato apoio dos nazistas (Divisão Condor, responsável pelo bombardeamento de Madri e de Guernica) e dos fascistas italianos (aviação e tropas de infantaria e blindados) enquanto que Stalin enviou material bélico e assessores militares para o lado republicano. A pior posição foi tomada pela França e a Inglaterra que optaram pela "Não-Intervenção". Mesmo assim, não foi possível evitar o engajamento de milhares de voluntários esquerdistas e comunistas que vieram de todas as partes (53 nacionalidades) para formar as Brigadas Internacionais (38 mil homens) para lutar pela defesa da República.

A crise entre as esquerdas

Stalin temia que a revolução social desencadeada pelos anarquistas e trotsquistas pusesse em perigo a defesa da República. Ordenou então que o PC espanhol comandasse a supressão das milícias (que seriam absorvidas por um exército regular) e um expurgo no POUM (uma pequena organização pró-trotsquista). O que foi feito em maio de 1937. Essa divisão íntima das esquerdas, entre pró-revolução e pró-república, debilitou ainda mais as possibilidades defensivas do governo republicano.

O fim da guerra

A superioridade militar do General. Franco, a unidade que conseguiu impor sobre as direitas, foi fator decisivo na sua vitória sobre a República. Em 1938 suas forças cortam a Espanha em duas partes, isolando a Catalunha do resto do país. Em janeiro de 1939, as tropas do gen. Franco entram em Barcelona e, no dia 28 de março, Madri se rende aos militares depois de ter resistido a poderosos ataques (aéreos, de blindados e de tropas de infantarias), por quase três anos. As baixas da Guerra Civil oscilam entre 330 a 405 mil mortos, sendo que apenas 1/3 ocorreu na guerra. Meio milhão de prédios foram destruídos parcial ou inteiramente e perdeu-se quase metade do gado espanhol. A renda per capita reduziu-se em 30% e fez com que a Espanha afundasse numa estagnação econômica que se prolongou por quase trinta anos.

Bibliografía

- Jackson, Gabriel - La Republica Española y la Guerra Civil, Barcelona, Grilabo, 1977.
- Matthews, Herbert - Metade da Espanha morreu, Rio de Janeiro, Civ. Bras., 1975.
- Orwell, Georg - Lutando na Espanha, Rio de janeiro, Civ. Bras. 1967.
- Thomas, Hugh - A Guerra Civil Espanhola, Rio de Janeiro, Civ. Bras. 1964, 2 vols.

Texto utilizado por mim como apoio de estudo para o vestibular. Retirado da internet.

1968

A Revolução Inesperada

“Havia um ar estranho: a revolução inesperada arrastara o adversário, tudo era permitido, a felicidade coletiva era desenfreada.” - Antonio Negri

“1968” foi o ano louco e enigmático do nosso século. Ninguém o previu e muito poucos os que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu. Deu-se uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções. Seu único antepassado foi 1848 quando também uma maré revolucionária - a “ Primavera dos Povos” -, iniciada em Paris em fevereiro, espalhou-se por quase todas as capitais e grandes cidades da Europa, chegando até o Recife no Brasil.
O próprio filósofo Jean-Paul Sartre, presente nos acontecimentos de maio de 1968 em Paris, confessou, dois anos depois, que “ainda estava pensando no que havia acontecido e que não tinha compreendido muito bem: não pude entender o que aqueles jovens queriam... então acompanhei como pude... fui conversar com eles na Sorbone, mas isso não queria dizer nada”.
A dificuldade de interpretar os acontecimentos daquele ano deve-se não só à “múltipla potencialidade do movimento” como a ambigüidade do seu resultado final. A mistura de festa saturnal romana com combates de rua entre estudantes, operários e policiais, fez com que alguns o vissem como “uma revolta comunitária” enquanto que para outros era “a reivindicação de um novo individualismo.”
Tornou-se um ano mítico porque “1968” foi o ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram as sociedades da época de uma maneira irreversível. Seria o marco para os movimentos ecologistas, feministas, das organizações não-governamentais (ONGs) e dos defensores das minorias e dos direitos humanos. Frustrou muita gente também. A não realização dos seus sonhos, “da imaginação chegando ao poder”, fez com que parte da juventude militante daquela época se refugiasse no consumo das drogas ou escolhesse a estrada da violência, da guerrilha e do terrorismo urbano.
“1968” foi também uma reação extremada, juvenil, às pressões de mais de vinte anos de Guerra Fria. Uma rejeição aos processos de manipulação da opinião pública por meio dos mass-midia que atuavam como “aparelhos ideológicos” incutindo os valores do capitalismo, e, simultaneamente, um repúdio “ao socialismo real”, ao marxismo oficial, ortodoxo, vigente no leste Europeu, e entre os PCs europeus ocidentais, vistos como ultrapassados.
Assemelhou-se aquele ano aloucado a um caleidoscópio, para qualquer lado que se girasse novas formas e novas expressões vinha a luz. Foi uma espécie de fissão nuclear espontânea que abalou as instituições e regimes. Uma revolução que não se socorreu de tiros e bombas, mas da pichação, das pedradas, das reuniões de massa, do alto-falante e de muita irreverência. Tudo o que parecia sólido desmanchou-se no ar.

O início de tudo

“Mas quem tomou as grandes decisões em 1968? Os movimentos mais característicos do 68 idealizaram a espontaneidade e se opuseram à liderança, estruturação e estratégia." - Eric Hobsbawn

Desde 1965, a pretexto do incidente do Golfo de Tonquim (que provou-se falso), o presidente norte-americano Lyndon Johnson ordenara o sistemático bombardeio do Vietnã do Norte, bem como o desembarque, no Vietnã do Sul, de um reforço de mais de 300 mil soldados para evitar uma possível vitória dos vietcongs (guerrilheiros comunistas que combatiam o governo sul-vietnamita que era pró-americano). Os Estados Unidos atolavam-se na Guerra do Vietnã.
No dia 30 de janeiro, na celebração do Teth, o Ano Novo vietnamita, os vietcongs, num ataque relâmpago de surpresa, tomaram de assalto 38 cidades sul-vietnamitas, entre elas Hue e Saigon (onde chegaram a ocupar a embaixada dos EUA), provocando uma derrota tática nas forças armadas norte-americanas. Apesar de terem perdido 30 mil homens na operação os vietcongs provaram serem capazes de frustra as expectativas de uma vitória americana.
A partir de então a crescente oposição à guerra dentro dos Estados Unidos quase tornou-se numa aberta insurreição da juventude. A violência dos bombardeios sobre a população civil vietnamita, composta de aldeões paupérrimos, já havia provocado desconfiança em relação a justeza da intervenção no Sudeste da Ásia. Diariamente a televisão americana mostrava imagens dos combates e dos sofrimentos dos soldados e dos civis. Somou-se a isto a visível falta de perspectiva para solucionar o conflito. Era inaceitável que a maior potência do Mundo atacasse um pequeno país camponês do Terceiro Mundo.
A Ofensiva do Ano Teth teve enormes repercussões. O Davi vietcong fizera cambalear o Golias americano. Como o Estados Unidos representava a Lei e a Ordem no mundo do após-guerra, era natural que todas as instituições por ele garantidas ou a ele associadas passassem a ser questionadas. A superpotência fora ferida na Ásia. Era possível abalar, senão pôr abaixo, tudo o que de alguma forma representasse o status quo, o estabelecimento, o regulamento, o conformismo social e sexual, o mesmismo existencial, a vida acadêmica, etc...
Paralelamente à Guerra Vietnamita, na China Popular Mao Tse-tung desencadeara a partir de 1965 a Grande Revolução Cultural Proletária (Wuchanjieji Wenhua Dageming), convocando para grandes manifestações a juventude chinesa. Estudantes, filhos de funcionários, de trabalhadores e de camponeses, na idade dos 14 aos 18 anos, agrupados nas Guardas Vermelhas, tomaram conta das ruas das grandes cidades num protesto-monstro contra os Zou zi Pai, aqueles elementos do partido comunista que, acreditavam eles, tinham simpatias pelo capitalismo e pela burguesia e que se encontravam infiltrados nos aparatos do poder. Mao Tse-tung , em velada luta contra altos setores da hierarquia do Partido Comunista chinês, convocara os jovens para auxiliá-lo a recuperar a autoridade. Para tanto fanatizou-os com a leitura de trechos seus selecionados um pequeno livro: O Livro Vermelho dos pensamentos do Presidente Mao, que passou a ser interpretado com fervor religioso pelos militantes juvenis. Voltando-se contra o passado chinês tradicional, provocaram cenas de vandalismo e intolerância. A imagem de milhares deles marchando e cantando pelas praças e avenidas chinesas, em nome da Revolução, serviu de emulação para que os estudantes ocidentais também viessem a imitá-los quando a ocasião se tornou propícia.
Além da indignação geral provocada pela Guerra Vietnamita e o fascínio pelas multidões juvenis da Revolução Cultural chinesa, também pesou na explosão de 1968 a morte de Che Guevara na Bolívia, ocorrida em outubro de 1967. Seu martírio pela causa revolucionária serviu para que muitos se inspirassem no seu sacrifício. Jovens de todas as partes, especialmente na Europa e na América Latina, tentando atender ao seu apelo para que se formassem em outros lugares do mundo, “dois, três Vietnãs” lançaram-se na vida guerrilheira.

Contestação e contracultura

“Apesar da fraude e da leviandade que embaraçam seus contornos uma nova cultura esta realmente surgindo entre nossa juventude (...) uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos da nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante.” - Theodore Roszack - A Contracultura, 1972

Nenhum outro acontecimento desde a Guerra da Secessão de 1861-65 provocou tamanha divisão na opinião publica norte-americana como o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. A chamada “maioria silenciosa” e os conservadores em geral acreditavam que era uma guerra justa e nobre porque os americanos estavam no Sudeste da Ásia para impedir que seus aliados do Vietnã do Sul sofresse uma agressão comunista.
Era um dos primados da política externa norte-americana, desde a Doutrina Truman de 1947, realizar operações militares para salvar “governos amigos”, como ocorrera na Guerra da Coréia em 1950-53. Logo todo o esforço nacional deveria dirigir-se em apoiar as autoridades e sustentar “nossos rapazes” na guerra que travavam no exterior.
Não foi esse o entendimento da juventude universitária, dos escritores e dos intelectuais. Para eles tudo não passava de um pretexto para a afirmação de uma política de força. Uma grande potência, a maior do mundo, queria impor-se ao povo de um pequeno pais da Ásia, recorrendo a uma argumentação pseudo-humanitária para encobrir os bombardeios, os massacres e outras atrocidades de guerra.
A postura pacifista redundou numa crescente crítica não só à intervenção militar, mas aos valores globais da sociedade americana. Pregaram a desobediência civil (civil desobedience), e, em grandes manifestações publicas, queimavam as convocações para o serviço militar.
Outra forma de contestação foi assumida pelo movimento hippie. Estes eram jovens da mais diversa extração social que ostensivamente vestiam-se de uma maneira chocante para o americano médio. Deixavam crescer barbas e cabelos, vestiam brim e trajes de algodão colorido, decoravam-se com colares, pulseiras, e profusões de anéis. Passaram a viver em bairros separados ou em comunidades rurais. Rejeitando a sociedade de consumo industrial viviam do artesanato e, no campo, da horta. Não mantinham as regras esperadas de comportamento, higiene, nem de acasalamento: “Paz e Amor”(Peace and Love) era o seu lema.
Desenvolveram um universo próprio, uma “vida alternativa”, que infelizmente não resistiu ao convívio com as drogas. Iniciados na marijuana terminaram por mergulhar em drogas mais fortes como o LSD (ácido lisérgico) e outras chamadas psicodélicas. Seus ídolos literários foram o escritor alemão Herman Hesse, cujos livros concentravam-se em histórias orientais de iniciação e abandono à introspecção e à meditação nirvânica, e o poeta Dylan Thomas, um rompedor de regras. Seu mestre pensante foi o psiquiatra Wilhelm Reich que associava a agressividade humana à repressão sexual praticada contra os adolescente e os jovens em geral por adultos que consideravam o sexo pecaminosos e imoral. Reich defendia, paralelo à revolução política, uma Revolução Sexual. A música eleita por eles foi o rock de contestação: Janis Joplin, Jim Morrison, Jimmy Hendrix, Bob Dylan, John Lenon e Joe Cocker foram seu principais expoentes.
Rejeitavam abertamente tudo o que pudesse ser identificado como vindo do “americano médio” porque acreditavam que a essência da agressão ao Vietnã encontrava-se no âmago da sociedade tecnocrática, competitiva, individualista e consumista. Propunham uma contracultura (couterculture). Não formaram um partido político nem desejavam disputar as eleições. Queriam impressionar pelo comportamento, mudar os costumes dos que os cercavam para mudar-lhes a mentalidade.
O apogeu do movimento da contracultura ocorreu no Festival de Woodstock, nas proximidades de Nova Iorque, em agosto de 1969, quando 300 a 500 mil jovens reuniram-se para um encontro de massas para celebrar o rock e manifestar-se pela paz.
A ala moderada do Movimento Negro, por sua vez , perdeu, em 4 de abril de 1968, o seu maior expoente, o pastor Martin Luther King , assassinado em Memphis. Ele que fora contestado por seus métodos pacifistas pelas lideranças mais jovens e radicais, os “Panteras Negras”( Black panthers), inclinava-se contra a Guerra do Vietnã no momento em que foi baleado. King entendia que a luta dos povos do Terceiro Mundo assemelhava-se a dos negros americanos contra a discriminação e o preconceito. Sua morte provocou uma violenta onda de protestos acompanhada de incêndios nos maiores bairros negros em 125 cidades americanas.

A nova esquerda

“....essa oposição luta contra a maioria da população, incluída a classe operária, contra todo o chamado way of life do sistema, contra a onipresente pressão do mesmo e, finalmente, contra o terror que reina fora das metrópoles.” Herbert Marcuse - O Fim da Utopia, 1967

O embasamento teórico do que estava acontecendo e de tudo o que viria ainda a ocorrer encontrou sua melhor exposição no pensamento do filósofo alemão Herbert Marcuse. Exilado nos Estados Unidos desde 1934, ele preocupou-se em entender quais as possibilidades de transformação social numa sociedade opulenta como a norte-americana. Num livro polêmico “A Ideologia da sociedade industrial” (One-Dimensional Man, 1964), Marcuse percebeu que a sociedade unidimensional - ao contrário da bidimensional onde capitalistas opõem-se aos operários -, caracterizava-se por sua capacidade de absorver as classes subalternas tornando-as não-contestadoras. Desta forma a idéia de Marx de que o operariado industrial, o moderno proletariado, seria a força motriz da revolução socialista não se verificava em sociedades do capitalismo tardio como a norte-americana. Nela os trabalhadores eram acomodados, seduzidos pelo consumo e pelos bens materiais.
Assim os agentes da transformação deveriam ser os outsiders, os que estavam fora das benesses, como as minorias étnicas ou os que simplesmente as rejeitavam, como os estudantes e os apoliticos intelectuais beatniks. Deles é que, ainda que inconscientemente, partiria a contestação ao sistema capitalista e a ordem autoritária.
Os militantes dessa Nova Esquerda (New Left) não eram marxistas nem tinham simpatias pelo socialismo. Eram de composição social diversificada, acolhendo gente de todos os estratos sociais. Seus principais representantes não eram políticos, mas poetas e escritores como Allen Ginsburg.
Marcuse, na tradição ideológica da Escola de Frankfurt, via na tecnologia uma forma mais sofisticada de repressão. Ela continuava existindo mesmo em sociedades democráticas, porque as técnicas do mass-midia “de manipulação e controle”, permitiam um policiamento mais eficiente sobre as mentes dos cidadãos. O processo de emancipação das massas no futuro dependia em grande parte não só do movimento político, mas também de uma substancial alteração do comportamento, inclusive ético-sexual. Para tal defendia a “dessublimação controlada” onde ocorreria uma libertação simultânea “ da sexualidade e da agressividade reprimidas.”
Pretendendo inverter a seqüência fixada por Engels, que dizia o socialismo avançar do utópico para o cientifico, Marcuse desejava resgatar o utópico. Entendia ele que graças ao desenvolvimento tecnológico - este era o seu lado positivo -, possibilitava-se hoje atingir-se a utopia (ou o que anteriormente se considerava uma utopia) e implantar uma sociedade solidária e igualitária.

As barricadas de maio

Estudante (observando o recinto): “Para ser bem sincero almejo ir-me embora. Esses muros antigos, ambiente abafado, em nada isto me agrada, estou desanimado. O espaço é muito pouco, estreito, desencanta. Não se vê um jardim, não há nenhuma planta. Velhas colunas, bancos, completo desalento. Aqui se embota o ouvido, a vista e o pensamento.” - Goethe - Fausto, 1808

Em 1965, na periferia da capital francesa, instalou-se Universidade Paris- Nanterre para acolher estudantes que não ingressavam no circuito superior tradicional (Sorbone, Escola Normal, Escola Politécnica, etc..). Em pouco tempo tornou-se um centro de contestação. Em princípios de 1968 os estudantes convidaram o psicanalista Wilhelm Reich para uma palestra, mas as autoridades vetaram-no. A questão sexual voltou a cena quando o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit questionou o Ministro da Educação. As manifestações que se seguiram foram reprimido pela polícia. Em represália os estudantes ocuparam Nanterre em 22 de março. Seus colegas da Sorbone se solidarizaram.
Em 3 de maio a Universidade de Sorbone foi fechada pelas autoridades. O movimento se espalhou. Passeatas estudantis, organizadas pela UNEF (Union nationale des étudiants de France), foram dissolvidas com violência cada vez maior pela CRS, a policia do Presidente De Gaulle. Indignados os estudantes ergueram obstáculos nas ruas centrais de Paris que davam acesso ao Quartier Latin, antigo centro universitário da cidade. A maior batalha deu-se na “noite das barricadas”, em 10 de maio. A essa altura ganharam as simpatias de outros setores sociais: sindicalistas, professores, funcionários, jornaleiros, comerciários, bancários aderiram a causa estudantil. De protesto estudantil contra o autoritarismo e o anacronismo das academias rapidamente transformou-se, com a adesão dos operários, numa contestação política ao regime gaulista.
Paris, com o calçamento revirado, vidraças partidas, postes caídos e carros incendiados, assumiu ares de cidade rebelada. No alto das casas e prédios tremulavam bandeiras negras dos anarquistas. De 18 de maio a 7 de junho, 9 milhões de franceses declararam-se em greve geral. No dia 13 de maio um milhão e duzentos mil marcharam pelas ruas em protesto contra o governo. Liderados por Daniel Cohn-Bendit (Dany le rouge), Alan Geismar e Jacques Sauvageot, os estudantes colocaram em xeque o regime do velho general.
De Gaulle, em 29 de maio, chegou a viajar para as bases francesas na Alemanha para obter apoio do Gen. Massu afim de uma possível intervenção militar. Enquanto isso delegados governamentais negociavam em Grenelle com os sindicatos uma série de melhorias para retirar os trabalhadores da greve e afastá-los dos jovens radicais. Os comunistas por sua vez negaram-se a associar-se a qualquer tentativa de assaltar o poder, o que fez J.P.Sartre denunciá-los dizendo que “Os Comunistas temem a revolução.”
De Gaulle recuperado propôs uma solução eleitoral e graças a ela, com o apoio de uma imensa manifestação da “maioria silenciosa” pela ordem, conseguiu evitar um motim social. Obteve uma significativa vitória nas eleições de 23-30 de junho. A partir de então o movimento estudantil refluiu. A tormenta passara, mas o General De Gaulle enfraquecido renunciou a presidência da Republica em 27 de abril de 1969, depois de tê-la ocupado por dez anos. Um jornalista francês Pierre Viansson-Ponté, num artigo irônico e profético escrito em março, alertou que “os franceses morrem de tédio” por estarem de fora dos grandes acontecimentos que ocorriam no mundo de então. Em maio o tédio transformou-se em furor e virou a França de cabeça para baixo.

A Primavera de Praga

“Um Socialismo de rosto humano” - Alexander Dubcek, 1968

Em 5 de abril de 1968 o povo tcheco tomou-se de surpresa quando soube dos principais pontos do novo Programa de Ação do PC tchecoslovaco. Fora uma elaboração de um grupo de jovens intelectuais comunistas que ascenderam pela mão do novo secretário-geral Alexander Dubcek, indicado para a liderança em janeiro daquele ano. Dubcek um completo desconhecido decidira-se a fazer uma reforma profunda na estrutura política do pais. Imaginara desestalinizá-lo definitivamente, removendo os derradeiros vestígios do autoritarismo e do despotismo que ele considerava aberrações do sistema socialista.
Apesar da desestalinização ter-se iniciado no XXº Congresso do PCURSS, em 1956, a Tchecoslováquia ainda era governada por antigos dirigentes identificados com a ortodoxia. Ainda viviam sob a sombra do que Jean-Paul Sartre chamou de “o fantasma de Stalin”. Dubcek achou que era o momento de “dar uma face humana ao socialismo”.
Além de prometer uma federalização efetiva, assegurava uma revisão constitucional que garantisse os direitos civis e as liberdades do cidadão. Entre elas a liberdade de imprensa e a livre organização partidária, o que implicava no fim do monopólio do partido comunista. Todos os perseguidos pelo regime seriam reabilitados e reintegrados. Doravante a Assembléia Nacional multipartidária é quem controlaria o governo e não mais o partido comunista, que também seria reformado e democratizado. Uma onda de alegria inundou o país. Chamou-se o movimento, merecidamente, de “ A Primavera de Praga”.
De todos os lados explodiram manifestações em favor da rápida democratização. Em junho de 1968, um texto de “Duas Mil Palavras” saiu publicado na Gazeta Literária (Liternární Listy), redigido por Ludvik Vaculik, com centenas de assinaturas de personalidades de todos setores sociais, pedindo a Dubcek que acelerasse o processo. Acreditava que seria possível transitar pacificamente de um regime comunista ortodoxo para uma social-democracia ocidentalizada. Dubcek tentava provar a possibilidade do convívio entre uma economia coletivizada com a mais ampla liberdade democrática.
O mundo olhava para Praga com apreensão. O que fariam os soviéticos e os seus vizinhos comunistas? As liberdades conquistadas em poucos dias pelo povo tcheco eram inadmissíveis para as velhas lideranças das “Democracias Populares”. Se elas vingassem em Praga eles teriam que também liberalizar os seus regimes. Os soviéticos por sua vez temiam as conseqüências geopolíticas. Uma Tchecoslováquia social-democrata e independente significava sua saída do Pacto de Varsóvia, o sistema defensivo anti-OTAN montado pela URSS em 1955. Uma brecha em sua muralha seria aberta pela defecção de Dubcek.
Então, numa operação militar de surpresa, as tropas do Pacto de Varsóvia lideradas pelos tanques russos entraram em Praga no dia 20 de agosto de 1968. A “Primavera de Praga” sucumbia perante a força bruta. Sepultaram naquela momento qualquer perspectiva do socialismo poder conviver com um regime de liberdade. Dubcek foi levado a Moscou e depois destituído. Cancelaram-se as reformas , mas elas lançaram a semente do que vinte anos depois seria adotado pela própria hierarquia soviética representada pela política da glasnost de Michail Gorbachov. Como um toque pessoal e trágico, em protesto contra a supressão das liberdades recém-conquistadas, o jovem Jan Palach incinerou-se numa praça de Praga em 16 de janeiro de 1969.

Ao redor do mundo

“We shall fight/ We will win/ Paris, London, Rome, Berlin..” (lutaremos, venceremos, Paris, etc...) Slogan dos contestadores ingleses, 1968.

Na Alemanha a conflagração estudantil deu-se a partir do atentado sofrido pelo líder estudantil Rudi Dutschke. Em Berlim, Frankfurt e demais cidades universitárias as marchas de protesto redundaram em grandes batalhas campais contra a policia. O fracasso que se seguiu fez com que muitos militantes resolvessem ingressar na RAF (Rotte Armee Faccion), também conhecido pelo nome dos seus dirigentes como o Grupo Baader-Meinhoff que, nos anos 70, tentaram manter um clima revolucionário na Alemanha Ocidental através de atentados terroristas e assassinatos seletivos.
Praticamente a mesma trajetória vamos encontrar na Itália, onde os estudantes rompidos com o Partido Comunista Italiano, a quem acusavam de conciliar com a burguesia, aderiram à violência revolucionária com a fundação das Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse) que chegaram a seqüestrar e matar o primeiro-ministro Aldo Moro em 1978.
Pode-se dizer que os enfrentamentos generalizados que caracterizaram boa parte dos anos 70, (ativada pelos grupos Brigate rosse, Baader-Meinhoff, Black Panthers, ERP, Montoneros, Tupamaros, Var-Palmares, Exército Vermelho japonês, etc.) foram subproduto das esperanças e das energias despertadas em choque com a frustração que se seguiu. Na América Latina o resultado foi mais trágico porque o movimento estudantil não se deparou com regimes democráticos mas sim com regimes militares.
O mais violento acontecimento no nosso continente foi o massacre dos estudantes - 26 mortos, 300 feridos e mais de mil aprisionados - na praça de Tlatelolco na Cidade do México em outubro de 1968, por ordens de Luis Echeverria, ministro do presidente Dias Ordaz. A título de comparação, em Paris apenas um estudante morreu nos distúrbios e a ação oficial mais violenta foi a expulsão do país de Daniel Cohn-Bendit que era de nacionalidade alemã.

A rebelião no Brasil

Três meses antes de ocorrer o levante dos estudantes parisienses, no Rio de Janeiro em 28 de março de 1968, um secundarista carioca chamado Edson Luís foi morto numa operação policial de repressão a um protesto em frente ao restaurante universitário “Calabouço”. Deu-se uma comoção nacional. O enterro fez-se acompanhar por uma multidão de 50 mil pessoas, estando presentes inúmeros intelectuais e artistas.
A partir daquele momento o Brasil entraria nos dez meses mais tensos e convulsionados da sua história do após-guerra. A insatisfação da juventude universitária com o Regime Militar de 1964, recebeu adesão de escritores e gente do teatro e do cinema perseguidos pela censura. As principais capitais do país, principalmente o Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, em pouco tempo se tornaram praça de guerra onde estudantes e policiais se enfrentavam quase que diariamente. Cada ação repressora mais excitava a juventude à oposição. Naquela altura apenas os estudantes enfrentavam o regime pois os lideres civis da Frente Ampla (Carlos Lacerda, Jucelino Kubischek e João Goulart, que estava exilado) haviam sido cassados.
Em 26 de junho daquele ano 100 mil pessoas - a Passeata dos Cem Mil - marcharam pelas ruas do Rio de Janeiro exigindo abrandamento da repressão, o fim da censura e a redemocratização do pais. A novidade foi a presença de religiosos, padres e freiras, que aderiram aos protestos. A juventude da época dividiu-se entre os “conscientes”, nos politizados que participavam das passeatas e dos protestos, e os “alienados” que não se inclinavam por ideologias ou pela política.
Em apoio ao regime surgiu o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) de extrema-direita que se especializou em atacar peças de teatro e em espancar atores e músicos considerados subversivos.
Em outubro, ao organizar clandestinamente o 30º congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), o movimento estudantil praticamente se suicidou. Descobertos em Ibiuna no interior de São Paulo, 1200 foram presos. A liderança inteira, entre eles Vladimir Palmeira, caiu em mãos da policia numa só operação. Como coroamento do desastre, o regime militar, sob chefia do Gen. Costa e Silva, decretou, em 13 de dezembro, o AI-5 (Ato Institucional nº 5).
Fechou-se o Congresso, prenderam-se milhares de oposicionista e suprimiram-se as liberdades civis que ainda restavam. A partir de então muitos jovens aderiram a luta armada entrando para organizações clandestinas tais como a ALN (Ação de Libertação Nacional), a VAR-Palmares ou dezenas de outras restantes. Por volta de 1972 o regime militar esmagara todas elas, fazendo com que os sobreviventes se exilassem ou fossem condenados a longas penas de prisão.
Pode-se dizer que a rebelião estudantil, se por um lado precipitou a abolição das liberdades marcando a transição do Regime Militar para a Ditadura Militar, por outro anunciou para o futuro o Movimento das Diretas-já, de 1984, que pôs término aos 20 anos de autoritarismo.

Bibliografia

- Caderno 2 - Dany, o verde; O Estado de São Paulo, 1º de abril de 1998
- Caderno de Cultura - Maio de 1968; Zero Hora, 2 de maio de 1998
- Cohen-Solal, Annie - Sartre: 1905-1980, Editora LP&M, Porto Alegre, 1986
- L’Histoire - Mai-68; la révolution introuvable L’Histoire nº 221,Paris, maio de 1998
- Mais - A última utopia Folha de São Paulo, 5º Caderno, 10 de maio de 1998
- Marcuse, Herbert - A Ideologia da Sociedade Industrial, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967
- Marcuse, Herbert - O Fim da Utopia, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,1969
- Roszack, Theodore - A Contracultura, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1972
- Ventura, Zuenir - 1968, o ano que não acabou Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988

Texto utilizado por mim como apoio de estudo para o vestibular. Retirado da internet.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE – Parte 01

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE: UM BALANÇO DA LITERATURA INTERNACIONAL

Sônia Draibe e Wilnês Henrique

INTRODUÇÃO 
    Ao convocar a Conferência sobre as Políticas Sociais nos Anos 80, a OCDE simultaneamente trouxe para o campo político-institucional a discussão sobre a crise do Welfare State, admitiu a crise e, finalmente, tomou posição no debate: a política econômica e a política social são intrinsecamente relacionadas e, portanto, a gestão da crise deve manifestar-se também como defesa do Estado Protetor, exigindo rigor nos seus objetivos, mas permitindo um avanço em direção à Sociedade do Bem-Estar.
    A discussão que colocou como protagonista principal o Estado do Bem-Estar iniciou-se com os primeiros sintomas da perda de dinamismo econômico das principais economias ocidentais na metade dos anos 70. E não se esgotou, obviamente, com a referida Conferência. Produziu uma imensa literatura, opôs em campos nem sempre muito delimitados os debatedores e avança para o fim da década cada vez mais imbricada no debate contemporâneo sobre a reestruturação das relações Estado-Sociedade-Mercado, sem entretanto ter logrado identificar soluções específicas para aquela que qualificava como a específica, crise do sistema de proteção social.
    Tendo realizado esta trajetória, entre o final dos anos setenta e a segunda metade dos 80, tem-se a impressão de que o debate sobre a crise do Estado Benefactor mudou de tom. Antecedido pela visão otimista que, do pós-guerra até os 80, compreendia como progressiva e tranqüila a expansão do Welfare State, esteve fortemente marcado, no início dos 80, pelo pessimismo: conservadores ou progressistas, de distintos matizes e apelando para diferentes argumentos, tendiam a concordar que aquela que parecia ser a mais importante construção histórica do pós-guerra dos países industrializados — o Estado do Bem-Estar Social  — fundado sobre uma particular e fecunda aliança entre as políticas econômica e social, atingira seus limites, esgotara suas potencialidades. A crise, ao pôr a nu todas as tensões estruturais do Wélfare State, encaminharia necessariamente soluções negadoras daquele, fosse o fim desta forma de regulação e, então, segundo os conservadores, uma volta aos sadios mecanismos do mercado, ou a edificação de uma nova estrutura, segundo os progressistas, mais próxima do que entendiam ser uma sociedade do bem-estar, assentada sobre novo tipo de sociabilidade.
    Já quase ao final dos anos 80, aquelas certezas parecem abaladas. E certo que a crise impôs restrições e, no plano das políticas sociais, muitos foram os reajustamentos processados. Entretanto, não apenas não se confirmaram as previsões pessimistas como as resistências ao desmantelamento dos mecanismos compensatórios e redistributivos expressaram uma defesa do Estado Protetor não prevista ou, pelo menos, pouco vislumbrada, situação que, se não significa certamente anular a importância dos temas discutidos, tem contudo imposto novos perfis e termos ao debate. Hoje, claramente, a discussão ampliou-se e remeteu as questões para o quadro mais geral das relações Estado-Economia-Sociedade, reduzindo o grau de autonomia com que foi concebida a "crise do Welfare State". Quadro amplo de enfrentamento teórico, mas sobretudo político-ideológico, no qual possivelmente a batuta segue ainda firmemente em mãos dos setores neoliberais. O que impõe aos progressistas a exigência e o desafio de revisão e avanço teórico, num movimento de reflexão cujas potencialidades obviamente estão relacionadas com a capacidade que terão estas correntes de libertarem-se de estreitos e estereotipados marcos anteriores, para efetivamente captarem as atuais tendências de transformação das sociedades capitalistas contemporâneas.
    Em relação aos tempos daquele debate, este artigo é fortemente datado e refere-se tão somente ao primeiro movimento. Escrito em 1984, tratou-se aqui de sistematizar a literatura internacional referida ao tema da crise do Welfare State. Trabalho preparatório de uma pesquisa sobre sistemas de seguridade social em perspectiva internacional (1), as opções de tratamento da literatura internacional estiveram estreitamente relacionadas com aquele objetivo. Interessava menos organizar grandes sínteses e classificações, muito mais desagregar da melhor forma possível os argumentos de modo a configurar uma quase agenda de questões a serem, posteriormente, examinadas nos estudos de casos nacionais. Por outro lado, a própria natureza heterogênea da literatura obrigava, para resgatar e conservar sua riqueza maior, a tomar com bastante cautela critérios de classificação que conduzissem à supressão das nuances, estas sim as mais interessantes para os objetivos de pesquisa que tínhamos em conta. A título de exemplo, basta lembrar que a divisão conservadores-progressistas, se tomada muito fortemente, poderia obscurecer a intrigante convergência, nem por isso identidade, entre a proposta conservadora de diminuição do papel centralizador e intervencionista do Estado, por um lado, e as sugestões progressistas de descentralização e autonomização das políticas sociais, em direção a formas mais participativas dos beneficiários, por outro. Tanto é assim que mesmo as categorias conservadores-progressistas foram tomadas segundo critérios extremamente amplos, tão-somente levando em consideração os compromissos valorativos com maior igualdade e justiça sociais, presentes em uns, ausentes em outros.
    Na sua organização, o trabalho foi dividido em duas grandes partes. Na Primeira, expomos da forma mais clara possível os temas e argumentos que dividem conservadores ou progressistas quando tratam de forma autônoma ou derivada a questão da crise do Estado Protetor. Na Segunda Parte, desenvolvemos um trabalho de cunho mais analítico, buscando destacar, de um lado, os níveis privilegiados pelas interpretações da crise  — o social, o econômico, o político — e, de outro, os autores mais relevantes que, segundo aquele critério, têm, de fato, contribuído para o desenvolvimento de explicações convincentes, assim como para o desenho de quadros alternativos de superação dos constrangimentos impostos às práticas de intervenção social do Estado.
    Cabe finalmente assinalar que tampouco deu-se um tratamento exaustivo à literatura examinada. Tendo de início trabalhado com aproximadamente mil títulos, selecionamos intencionalmente os autores segundo os critérios de maior consistência da argumentação, do interesse frente ao leque de teses previamente identificadas e, enfim, do grau de clareza e explicitação com que teses e argumentos eram apresentados. A escolha, por exemplo, de Milton Friedman para examinar os argumentos econômicos conservadores ou neoliberais, deveu-se àqueles critérios e intenções, uma vez constatada a pouca sistematização, àquela época, da produção neoliberal contemporânea, tão em voga.

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE – Parte 02

PRIMEIRA PARTE
    A maioria das economias capitalistas experimentou no pós-guerra um crescimento econômico sem precedentes, aliado à expansão de programas e sistemas de bem-estar social. Para a maioria dos analistas, ocorreu uma parceria bem-sucedida entre a política social e a política econômica, sustentada por um consenso acerca do estímulo econômico conjugado com segurança e justiça sociais. Teria havido mesmo um "círculo virtuoso" entre a política econômica keynesiana e o Welfare State: aquela regula e estimula o crescimento econômico; este por sua vez, arrefece os conflitos sociais e permite a expansão de políticas de corte social, que amenizam tensões e, no terceiro momento, potenciam a produção e a demanda efetiva.
    A crise atual, que envolve a maioria dos países capitalistas, mostra seus impactos a todos os níveis das sociedades: o econômico, obviamente, mas também o social e o político. Tudo indica tratar-se de uma crise profunda, que afeta as estruturas sociais e de poder, mesmo levadas em consideração as claras diferenças nacionais. A aceleração inflacionária, a desorganização do sistema financeiro internacional, as elevadas taxas de desemprego têm imposto reordenamentos econômicos de grande significado e têm trazido consigo profundas alterações tecnológicas, assim como redefinições dos papéis e ações das instituições sociais e políticas. O sentido e os resultados desses desequilíbrios e reordenamentos não estão, ainda, claramente delineados. Por outro lado, os rumos seguidos na resolução dos vários problemas em questão estão condicionados por pressões sociais e conflitos políticos. Finalmente, assim como a crise traz já, em seu bojo, embriões do futuro, também as medidas "anticrise" em curso, de diferentes matizes, determinarão em parte as condições mais ou menos propícias — do ponto de vista econômico, mas sobretudo social — da retomada posterior.
    A performance de baixo crescimento com aceleração inflacionária e desequilíbrios financeiros dos Estados parece ter gerado um conflito entre política econômica e política social destruindo aquele "círculo virtuoso do pós-guerra". Mais ainda, parece ter sido definitivamente abalado o consenso quanto à possibilidade de se assegurar o crescimento econômico conjugado com a tentativa de contra-restar a tendência à desigualdade e injustiça sociais através de transferências de renda e gastos de governos. Do mesmo modo, pareceria ter diminuído a crença na capacidade de gerenciamento, pelo Estado, dos vários desequilíbrios, dado o declínio mesmo da capacidade de governar, seja por envelhecimento dos mecanismos de política, seja pela profunda crise de confiança que afeta a relação governantes-governados (Dror, 1981). A projeção de uma Sociedade do Bem-Estar, baseada nas análises que identificavam o Welfare State com uma mudança estrutural da sociedade capitalista, revelaria, hoje, a face excessivamente otimista que se manifestara ao longo dos anos cinqüenta e sessenta.
    Três ordens de questões têm, em geral presidido os estudos e debates sobre a crise do Welfare State:

  • quais são as medidas necessárias para superar a crise? Inclui-se aqui a necessidade de reexaminar o papel e instrumentos de políticas, dada a aparente inadequação tanto das políticas sociais tradicionais quanto das políticas econômicas keynesianas;
  • quais as alterações de longo prazo necessárias para enfrentar as transformações em curso (as tecnológicas, mas também, as de valores)? Inclui-se o reexame do papel do Estado, das instituições e grupos sociais; da estrutura e práticas das organizações e dos processos decisórios:
  • como obter recursos para promover as alterações necessárias, não só os financeiros, mas também e sobretudo os políticos, dada a erosão do consenso social prévio?

     Evidentemente, as respostas a estas questões passam, previamente, por uma concepção da própria natureza da crise, assim como por uma definição das relações entre política econômica e política social. Ora, é basicamente sobre essas concepções e definições que as divergências maiores se dão, delineando os campos político-ideológicos que separam conservadores de progressistas. Na Segunda Parte deste trabalho, daremos um tratamento mais sistemático às discussões sobre a crise e a natureza da relação política econômica-política social. Nesta Primeira Parte, nos limitaremos a expor os argumentos que tratam da relação crise-Welfare State.

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE – Parte 03

CRISE E CRISE DO "WELFARE STATE"
    Em geral, reconhece-se de partida que a crise econômica atual vem solapando as bases de financiamento dos gastos sociais: seja pela diminuição das receitas e/ou das contribuições sociais, provocadas pela redução da atividade econômica, seja pelas pressões advindas do desemprego crescente e da aceleração inflacionária, que elevam os custos e despesas sociais. Desta forma, os Estados vêm sendo cada vez mais incapazes ,de responder às exigências financeiras impostas pelos programas atuais.
    Entretanto, alguns autores tendem a dar um tratamento mais autônomo à questão da crise do Welfare State em relação à crise econômica geral.

O "WELFARE STATE" NÃO PASSA POR UMA VERDADEIRA CRISE; SOFRE ANTES UMA MUTAÇÃO EM SUA NATUREZA E OPERAÇÃO
    Esta é, principalmente, a tese comum aos progressistas, isto é, aqueles autores que, em que pesem suas divergências, partem do suposto valorativo da necessidade de se caminhar para graus cada vez menores de pobreza, desigualdade e injustiça social.
    Para alguns analistas, os problemas enfrentados atualmente pelo Estado Benefactor dizem respeito muito mais a pressões por sua mudança que propriamente a uma crise ou esgotamento de uma dada forma de intervenção social do Estado.

     A) Aparentemente, no próprio momento de consolidação de um complexo aparelho e programas estatais de benefícios sociais, estaria havendo pressões no sentido de minimizar tanto os graus de padronização e massificação das formas de atendimento, quanto o peso excessivo da estrutura estatal burocratizada, e centralizada, responsável pela definição e distribuição de bens e serviços. Tendência vista, aliás, pelos autores como positiva, pois estaria a prenunciar a passagem de um Estado do Bem-Estar para uma Sociedade do Bem-Estar, enfatizando pelo menos dois aspectos: a ampliação das margens de opção dos beneficiários — e, portanto, a proposição de conjuntos alternativos em cada programa — e a maior participação de organizações comunitárias e locais na gestão dos programas — ou seja, uma maior democratização.
    A maioria dos analistas da OCDE (OCDE, 1981) acredita que se o Welfare State enfrenta hoje problemas derivados da crise econômica — fundamentalmente pelo aspecto financeiro enfrenta também dificuldades específicas, que envolvem o questionamento da estrutura atual dos programas sociais. Estariam estes, de fato, promovendo maior eqüidade social? São capazes de responder aos problemas de desemprego e demandas sociais crescentes, nem sempre compatíveis? Têm efetivamente contribuído para uma performance positiva da economia?
    São inúmeras as divergências sobre estas questões, mas tanto os analistas da OCDE quanto outros (Hirschman, 1980; Sachs, 1982; Delcourt, 1982) apontam para a necessidade de se reexaminar as políticas sociais frente à crise e às pressões sociais e políticas no sentido de uma utilização mais humana, racional e democrática dos recursos, assim como de uma satisfação equilibrada das necessidades (Perrin, 1981).
    Se tais alterações se derem, o que poderá ocorrer a longo prazo será, então, a transformação em direção a uma Welfare Society, entendida enquanto uma estratégia mais descentralizada e diversificada, seja na concepção dos programas, seja na sua implementação e controle. A. H. Hasley (1981) indica que os limites atuais das finanças estatais, a complexidade atual das necessidades sociais e a abrangência dos interesses, incluindo o surgimento de aspirações e valores novos, constituem fatores todos a concorrer para esta mesma direção de transformação. 
     B)para outros observadores, também o problema é menos o de uma crise financeira dos programas sociais de governo e sim o da necessidade de reorientá-los no sentido de se constituírem, de fato, em mecanismos efetivos de solução dos problemas da pobreza e da desigualdade sociais, coisa que até o presente momento não lograram (ainda que se reconheça sua positividade social). Os problemas em geral apontados são: provisão inadequada para famílias de trabalhadores de baixa renda; incapacidade de estender aos que nunca trabalharam ou aos trabalhadores de tempo parcial os direitos e a proteção; discriminação contra mulheres e minorias; ênfase em políticas curativas e não preventivas na área da saúde (OIT, 1984; Holland, 1983; Berlinger, 1983). Também a ineficiência na redistribuição de renda é apontada: além de haver apenas a redistribuição horizontal, a maior parte dos benefícios vai para as camadas de renda mais altas (Delcourt, 1982), ou reforçam mesmo os padrões desiguais de estratificação social (Malloy, 1982). É necessário enfatizar que, no campo progressista, a crítica aos programas e a busca de medidas de reorientação estão, em geral, relacionadas com a "a vontade" de que deixem de ter apenas papel curativo ou de alívio à pobreza, mas adquiram papel preventivo e de solução das raízes da pobreza (Dobell, 1981; Sefer, 1981). Neste sentido, estas teses diferenciam-se das críticas à ineficiência levadas a cabo tanto por conservadores quanto por marxistas ou "radicais". 
    C) Finalmente, para uma determinada linha de análise, o desafio único que se coloca atualmente para os aparelhos de intervenção social dos Estados é o de se constituírem em estruturas menos vulneráveis às crises econômicas. É admitido pela maioria dos analistas que a estrutura de financiamento dos programas sociais é instabilizada num momento de crise econômica, (por declínio das receitas tributárias e/ou das contribuições e elevação das despesas). Nesse sentido, seria necessário repensar a estrutura de financiamento do conjunto dos programas. Além disso, questiona-se o impacto da estrutura atual de financiamento sobre os trabalhadores e as empresas: não só o sistema de contribuições sociais baseado principalmente na folha de salários parece cada vez mais insuficiente e perverso, como a própria estrutura tributária do Estado impõe ser repensada. Também tem sido assinalado o impacto negativo das contribuições sociais sobre os custos das empresas, principalmente a ameaça às empresas trabalho-intensivas, o que encorajaria a substituição de trabalho por capital: sugere-se, por exemplo, que as contribuições dos empregadores deveria basear-se no valor adicionado. Entretanto, em relação ao impacto econômico sobre o emprego e o investimento, as análises são inconclusivas, havendo prós e contras tanto da alteração da base das contribuições quanto da alteração da relação contribuições sociais versus tributo.
    Em relação às vantagens de programas baseados ou em contribuições ou em receita tributária, análises recentes da OIT enfatizam que o sistema de contribuições é melhor para programas cujos benefícios estão relacionados com o nível de rendimento anterior, enquanto o financiamento através de receita tributária é mais indicado para programas universais e homogêneos, de cobertura total.
    É certo que os problemas de financiamento dos programas sociais envolve a discussão das estruturas gerais de financiamento do Estado e também se reconhece os impactos distributivos e de alocações de recursos embutidos em estruturas determinadas de financiamento; entretanto, para a OIT, os argumentos econômicos não são e não podem ser decisivos para a escolha das formas de financiamento dos programas sociais (OIT, 1984).
    Vejamos agora a argumentação dos que afirmam, ao contrário, viver o Welfare Stacte uma efetiva crise, pela sua própria estrutura e funcionamento, ou pela sua relação com a crise econômica geral.

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE – Parte 04

O "WELFARE STATE" É UMA ESTRUTURA PERNICIOSA E CORRESPONDE A UMA CONCEPÇÃO PERVERSA E FALIDA DO ESTADO
    Aqui está, principalmente, o argumento conservador, que tem sido retomado com freqüência na situação da crise atual e tem inspirado programas de governo ou discursos justificadores de opções ortodoxas de gestão da crise. Em geral, o argumento gira em torno a três questões:

a) Em primeiro lugar, assinala-se que a expansão dos gastos sociais do Estado faz-se tendencialmente em condições de desequilíbrio orçamentário, provocando déficits públicos recorrentes, que penalizam a atividade produtiva e provocam inflação e desemprego. Aliás, é por isso mesmo que estamos em crise: devido à expansão excessiva dos gastos sociais, responsáveis em última instância pela situação atual e revelando, de uma vez para sempre, a intervenção intolerável, ineficiente e corrompedora do Estado sobre os mecanismos saneadores do mercado.

     A identificação dos efeitos perversos dos programas sociais parte da constatação de que representam uma ameaça às finanças estatais, ao mesmo tempo em que provocam uma maior intervenção do Estado, ao desestabilizar o funcionamento da economia. Vários aspectos são considerados:

  • a elevação dos gastos públicos, ao provocar desequilíbrios orçamentários, é fonte inflacionária (quer pela emissão de moeda, quer pela elevação de tributos e encargos sociais que impulsionam um espiral preços/salários);
  • o financiamento dos programas sociais requer a elevação dos tributos e contribuições sociais, o que reduz a poupança e portanto o investimento. Por outro lado, elevadas cargas de contribuições dos empregadores provocam uma elevação dos custos salariais, o que seria responsável por uma perda de competitividade externa dos produtos;
  • a extensão dos programas representa um crescimento de empregos públicos que não são produtivos.

     Em resumo, os gastos sociais e sua forma de financiamento são responsáveis pela inflação, declínio dos investimentos e, portanto, pelo desemprego.

b) Em segundo lugar, sustenta-se que, em essência, os programas sociais, ao eliminar os riscos de todo tipo e ao provocar uma igualdade perniciosa, ferem a ética do trabalho e comprometem o mecanismo de mercado: tendem a provocar desestímulos ao trabalho, diminuindo os graus de competitividade da mão-de-obra, rebaixando os níveis gerais de produtividade econômica e mantendo artificialmente em alta os salários.
     O desincentivo ao trabalho provocado pelos programas sociais é apreendido em dois níveis: o da quebra da ética e o dos efeitos perversos sobre o funcionamento da economia — é mesmo pensada a existência de um trade-off entre a eficiência econômica e a igualdade e proteção social, os excessos da segunda, via programas sociais, provocam uma diminuição na primeira.

c) Finalmente no plano político, argumenta-se contra a amplitude dos programas sociais que, ao revelar os graus insuportáveis de regulação e intervenção do Estado na vida social, estariam introduzindo, nas "sociedades democráticas", elevados índices de autoritarismo, tendendo mesmo ao totalitarismo (Huntford, 1971; Friedman, 1977).

    Recentemente, Gilder (1982 ) expôs de modo bastante claro o argumento conservador e apoiamo-nos nele para detalhá-lo.
    Para Gilder, os problemas enfrentados hoje pelo capitalismo giram em torno a uma cidadania dependente do. Estado, à dissolução da família, à quebra da ética do trabalho, à redução da riqueza e bem-estar das camadas de renda alta e média, à inflação e ao declínio dos investimentos. Se a força do capitalismo advém de seus impulsos básicos — o risco, a concorrência — sua saúde depende dos mecanismos de incentivo ao trabalho e ao investimento.
    É a ação do Estado que instabiliza os mecanismos de incentivos, ao dar excessiva proteção e segurança econômica e social, minando 0 capitalismo e sobrecarregando o Estado. Não sendo ruim em si, a ação estatal deve, entretanto, ser bem orientada, o que não tem acontecido.
    O alargamento dos programas sociais governamentais — seguro-desemprego, pensões e aposentadorias, programas de manutenção de rendimento (em dinheiro ou em espécie) etc — gerou uma situação de excessiva proteção e segurança econômica, na qual as políticas atuam negativamente, isto é, ampliam os problemas que deveriam solucionar
    O alvo principal da crítica de Gilder são os programas distributivos de combate à pobreza — com testes de meios: contêm anomalias e perversidades intrínsecas, que se tornam maiores com a elevação do nível de benefícios, principalmente se forem maiores que os salários oferecidos no mercado.
    À medida que a família passa a ser sustentada pelo Estado, é destruído o papel-chave do pai e aí tem início o processo de dissolução das famílias. Acrescente-se a isso a destruição do incentivo ao trabalho e a quebra da ética do trabalho, substituída progressivamente pela resignação, escapismo, violência, promiscuidade sexual etc. Mas as políticas sociais minam de forma mais geral a moral, ao gerar uma Welfare Culture, caracterizada pela promiscuidade, drogas, famílias lideradas por mulheres, filhos ilegítimos, guetto family etc. Finalmente, esse é também um processo de extensão e perpetuação da pobreza, dado o desestímulo dos homens e a incapacidade das mulheres em reverter esta situação.
    Programas de manutenção e criação de empregos na crise tendem a tornar o trabalho opcional, geram dependência do Estado e terminam por se constituir em fonte de desemprego. Programas de invalidez ou as aposentadorias tendem a situar como beneficiários pessoas que efetivamente não o são: alargam o tempo de invalidez ou a encorajam a aposentadoria antecipada. Enfim, as proteções e redistribuições negam aquilo que é o maior incentivo ao trabalho — a necessidade — e portanto geram pobreza.
    A solução passa pela redução dos programas tanto quanto possível: redução dos benefícios, controle do acesso e fraudes, austeridade no fornecimento de bens, privatização dos serviços etc.
    Se a extensão dos programas sociais tem os efeitos perversos descritos, a forma com que são financiados traz conseqüências, segundo Gilder, ainda piores, ao minar os incentivos à produção e ao investimento.
    O problema reside na elevação dos tributos. A tributação progressiva sobre a renda, os lucros e o capital diminui os fundos disponíveis para o investimento e assim reduz o incentivo a investir. Por outro lado, essa elevação dos tributos é responsável pela inflação: quer porque diminui a produção sem que haja limitação da oferta de dinheiro pelo Estado, quer devido à elevação dos custos das empresas, desencadeando uma espiral preços/salários.
    Além disso, há dois outros aspectos da ação do Estado sobre os negócios: os efeitos perversos do excesso de controles e regulamentações sobre a indústria e os do auxílio governamental às empresas em falência. Nesse segundo aspecto, a questão é a da proteção demasiada — é necessário que o mercado atue para que as empresas mais aptas sobrevivam.
    A visão supply-side-economics de Gilder resume-se nisso: a "força criativa" do capitalismo é o investimento privado (e o futuro significa investimento com inovação tecnológica) e a atuação do Estado na forma em que está estruturada suprime os incentivos ao investimento. Não se trata de que os gastos e o déficit público sejam maus em si (ou inflacionários), ainda que a regulação excessiva sobre a economia não seja fértil e o setor público não exatamente produtivo. O problema é que "... quando o governo dá bem-estar, pagamentos aos desempregados, empregos em serviços públicos em quantidade que detém o trabalho produtivo, e quando eleva os tributos das empresas rentáveis para pagar por aqueles, a demanda declina" (Gilder, p. 162) ou seja, os gastos sociais e o emprego público não são linhas de defesa do gasto privado, ao contrária, o reduzem. Dessa forma, o que não pode haver é um déficit público para financiar os pobres e penalizar os negócios. A intervenção do Estado deve estar orientada para tudo o que favoreça em empresas: menor controle, redução da tributação, principalmente sobre investimento e capital, subsídios e créditos para investimento em P&D. Só assim haveria crescimento, e o crescimento do setor privado é a melhor forma de combater a inflação. O que melhor deveria fazer o Estado, então, seria restringir-se a aumentar os lucros das empresas.
    Os conservadores, portanto, tratam o Welfare State, no plano político-ideológico, como uma concepção falida do Estado e, no econômico, como a estrutura responsável pela crise atual, porque impeditiva de que os mecanismos de mercado possam sanar efetivamente a economia.

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE – Parte 05

A CRISE DO "WELFARE STATE" É SOBRETUDO UMA CRISE DE CARÁTER FINANCEIRO-FISCAL 
    Esta tese tem sido afirmada por conservadores tanto quanto por progressistas. Circunscrevendo à questão de financiamento os problemas de continuidade e ampliação dos gastos sociais do Estado, é analisada por diferentes ângulos.

a) A crise, em si, já envolve um problema fiscal bastante sério. No caso dos programas sociais, a questão passa a ser a de como responder pelo seu financiamento, quando configura-se até mesmo um círculo vicioso à medida que diminuem as receitas públicas pelo rebaixamento da atividade econômica, e simultaneamente aumentam as exigências financeiras de programas sociais, exatamente acrescidas pela crise, tais como maiores compensações ao desemprego e à instabilidade, elevação com gastos de saúde etc. Na perspectiva progressista, a conjugação de programas econômicos anti-recessivos com a revisão das prioridades e a realocação de recursos estatais parece ser a alternativa única para a superação do estrangulamento financeiro desde que se queira evitar que massas crescentes se defrontem com níveis cada vez maiores de pobreza e carência (OIT, 1984; Rosanvallon, 1981; OCDE, 1981).

b) A maior parte dos estudos tende a identificar o problema do financiamento como um dilema próprio da estrutura dos mecanismos de sustentação dos programas sociais. Isto é, o argumento tende a enfatizar que a forma típica de financiamento dos gastos sociais, baseada em contribuições da massa ativa de trabalhadores, já contém em si uma tendência ao estrangulamento à medida que se prevê alterações etárias e "sociais" da força de trabalho de sorte que, cada vez mais, massas maiores de dependentes dependerão de contribuições extraídas de números relativamente menores de trabalhadores e/ou a tempos relativamente mais curtos de vida ativa. Ora, a crise econômica viria tão-somente agravar tal estado de coisas, ao introduzir não apenas o problema do desemprego, mas também o da própria dificuldade de valorização dos fundos fiscais arrecadados, dada sua vinculação com circuitos cada vez mais especulativos.

    Tamburi (1983) argumenta, por exemplo, que há razões estruturais para os problemas de financiamento dos sistemas de pensões e aposentadorias derivados da maturação do sistema e da alteração da composição etária da população. Por sua vez, a crise econômica e a aceleração inflacionária diminuem os recursos e elevam os gastos, agravando aqueles problemas estruturais. Ao mesmo tempo, torna-se difícil elevar as contribuições e passa a haver uma disputa maior por recursos do Estado entre as várias áreas de gasto.
    Brian Abel-Smith resume com clareza as relações que conduzem a esta argumentação. Nas condições de recessão, os gastos públicos tendem a crescer, frente a uma. receita declinaste: mais desempregados passam a receber benefícios; menos pessoas pagam impostos e contribuições de seguros sociais; elevam-se os custos de medidas que visam a proporcionar atividade e treinamento; crescem também os gastos advindos de apoio massivo a firmas que, de outro modo, desempregariam trabalhadores. Finalmente, há que se considerar o enorme custo em juros do financiamento dos déficits (Abel-Smith, 1980). Delcourt, ao enfatizar a situação de gastos crescentes e, receitas declinantes, nas condições de recessão, acrescenta ainda considerações sobre a ampliação do nível de aspiração e das necessidades: a incidência crescente de doenças crônicas; elevação dos graus de cobertura e pressões por garantias de benefícios mínimos; elevação dos custos de bens e equipamentos de distribuição de serviços sociais na situação de inflação. Portanto, é nesse quadro de desequilíbrio crônico entre gasto social e receitas do Estado que a crise se introduz como elemento agravante (Delcourt, 1982).

c) Vale a pena. destacar, pela força com que tem aparecido em textos recentes sobre a crise que afeta os Welfare States, o argumento de que os programas sociais envolvem também os problemas crônicos da relação entre taxas maiores de crescimento dos gastos que das receitas uma vez que, desencadeados certos programas, novas demandas são continuamente criadas, seja por setores não cobertos anteriormente, seja por reivindicações por benefícios não previstos de partida. Em suma, os programas reporiam os problemas para os quais foram criados ou acabariam gerando outros.

    Na perspectiva conservadora, o crescimento dos gastos deriva-se da concepção de que os programas colocam os trabalhadores potencialmente em auxílio, isto é, quanto maior ajuda é dada, maior é pedida, além do que incentivam as práticas de permanência como beneficiários (fraudes de todo o tipo) e como não trabalhadores (Gilder, 1982).
    Na perspectiva progressista, pensa-se nas demandas por parte de grupos sociais não cobertos previamente por um dado programa, mas sobretudo pensa-se na geração de novas demandas, antes não previstas. O exemplo mais importante talvez seja o da ecologia, isto é, a ação do Estado protegendo o ambiente e as pessoas contra riscos provocados pelas depredações ambientais (Sachs, 1982; OECD, 1981).

d) Finalmente, no âmbito da análise financeira da crise dos Estados de Bem-Estar, é importante reproduzir a argumentação de O'Connor (1977) peio peso que ainda conserva no campo de interpretação marxista. Para O'Connor, o problema de continuidade e desenvolvimento de programas sociais inscreve-se numa problemática mais ampla, de "crise fiscal do Estado", que se expressa no crescimento dos gastos públicos mais rápido que o meio de financiá-los.

    As raízes estruturais dessa crise do Estado encontram-se na dinâmica subjacente às funções contraditórias do Estado capitalista. O processo de acumulação do capital monopolista torna cada vez mais necessária a intervenção do Estado através dos gastos de capital social (projetos e serviços destinados a elevar a produtividade e/ou diminuir os custos de reprodução da força de trabalho). Entretanto, a própria expansão do capital monopolista tende a gerar desequilíbrios econômicos e sociais — desemprego, pobreza, capacidade excedente, capitalistas excedentes do setor competitivo da economia etc. — situação que impõe maiores gastos sociais do Estado para manter a harmonia social. Há aqui uma tensão permanente — conciliar a necessidade crescente de dispêndio estatal que visa a garantir a legitimidade e coesão do todo social vis-à-vis aquele destinado a regular a acumulação do capital monopolista — tensão que gera uma tendência às crises. A médio prazo, essa tendência é agravada pelas características do próprio setor estatal, na medida em que seus custos salariais tendem a se elevar devido ao crescimento lento da produtividade e ao padrão salarial relativamente mais alto.
    Nesse sentido, a crise do gasto social não tem uma dinâmica autônoma, é antes elemento da crise geral do Estado Capitalista. (O'Connor, 1977; Gough, 1975, 1981).
    Interessa, agora, reconstituir um outro conjunto de argumentos que atribuem a crise dos Estados do Bem-Estar à estrutura e funcionamento do Estado, ou aos problemas de legitimidade ou, finalmente, a questões de ordem estritamente política.

"WELFARE STATE", CRISE E GESTÃO DA CRISE – Parte 06

A crise do "Welfare State" é, principalmente,uma crise produzida pela centralização e burocratização excessivas

    Tanto conservadores quanto analistas de posições progressistas tendem a enfatizar e criticar a formidável expansão do aparelho social do Estado, a burocratização excessiva dos programas sociais e a centralização exagerada dos processos decisórios como os elementos principais que inibem ou obstaculizam a democracia, por um lado, e que chegam a provocar crises de má administração ou de caráter entrópico, de outro.
    A burocratização crescente do aparelho estatal é apreendida e criticada sob diversos prismas:

a) Os aparelhos e instituições estatais são cada vez maiores, mas sua eficácia diminui progressivamente, apontando para características de entropia no sistema de produção de bens e serviços sociais. A burocracia é fragmentada, de um lado e, de outro, caracteriza-se por grande dificuldade de adaptar-se às mudanças, assim como tende a imobilizar mecanismos e agentes visando à manutenção de seu status. Por tais razões, os procedimentos impostos pela crescente complexidade da maquinaria de administração e decisão têm introduzido ineficácias, desperdícios e "tecnicidades" que conformam os problemas sociais muito mais como "casos" a serem equacionados que como questões pessoais de pobreza e carência (Sefer, 1981; Delcourt, 1982; Logue, 1979).
b) As burocracias do aparelho social tendem, para manter-se e expandir-se, a impulsionar desmedidamente a oferta de bens e serviços sociais, assim como a proliferação irracional de programas. Por outro lado, atuam segundo uma lógica impregnada de particularismos dada a vinculação com lobbies de clientelas, reforçando os ingredientes corporativistas já próprios das demandas e pressões (Delcourt, 1982; Heclo, 1975; Friedman, 1977).
c) As burocracias tornam-se cada vez mais .o elemento decisivo dos processos de decisão e os mecanismos políticos tradicionais são cada vez mais incapazes de garantir formas efetivamente democráticas de controle e participação nas decisões de políticas sociais. A outra face deste processo é o crescimento em grau, intensidade e detalhamento dos controles sociais exercidos pelo Estado e seus burocratas (Walzer, 1982; Wilenski, 1981).

    Por sua vez, a centralização incomensurável dos processos decisórios e dos mecanismos estatais de poder reforçaram ao extremo o grau de autoritarismo presente na imposição de políticas. Conjugada com a burocratização, a centralização dos mecanismos decisórios favorece um controle social sem precedente sobre indivíduos e grupos sociais: "Talvez a mais impressionante característica da moderna administração do welfare é a completa variedade de seus instrumentos coercitivos e dissuasivos. Cada nova necessidade reconhecida, cada serviço recebido, criam uma nova dependência e, portanto, nova obrigação social" (Walzer, 1982, p. 137). As formas hipercentralizadas de decisão, por outro lado, tendem a reforçar o caráter padronizado dos programas, com restritos espaços para o reconhecimento da diversidade social ou das opções individuais. Finalmente, e claramente para a visão conservadora, a centralização é quase confundida com estatização, de modo que a alternativa enfatizada é, antes de tudo, a da privatização da produção e distribuição de bens e serviços sociais (Friedman, 1977).

A crise do "Welfare State" deve-se à sua perda de eficácia social

    A fraca eficácia de Weljare State é enfatizada, por alguns, como responsável por sua crise, tese que encaminharia as soluções alternativas, seja sugerindo a supressão desta forma de Estado, seja optando por devastadores cortes nos orçamentos sociais do Estado.
    É Ivan Illich (1981) o autor mais representativo à esquerda, da primeira alternativa, isto é, a da supressão do Estado-Providência e a sua substituição por um modo de produção autônomo. Sua tese, bastante conhecida, é da contraprodutividade da prestação de serviços sociais pelo Estado: a medicina hiper-sofisticada termina por provocar doenças, a escola leva o aluno a desaprender etc. E esta contraprodutividade é, para Illich, componente inevitável das instituições modernas, não podendo, portanto, ser "corrigida".
    Na frente conservadora, William Simon (1981) enfatiza a tese do caráter não-distributivo do Estado dada a sua ineficácia, que termina por privilegiar essencialmente as classes médias. A solução é, para este inspirador dos programas conservadores americanos, cortar substancialmente os orçamentos sociais e assistir financeiramente "aqueles que são pobres", distintos tanto dos vagabundos quanto dos falsos desempregados!
    No campo marxista, em geral afirma-se que os programas sociais não têm como objetivo fundamental e nem são de fato mecanismos redistributivos e alteradores, no sentido forte, da desigualdade social. São vistos seja como ampliação da responsabilidade do Estado em relação aos custos da reprodução da força de trabalho, seja como formas de controle social e de diminuição dos graus explosivos de luta de classe (Gough, 1975). Neste sentido, não têm nem nunca tiveram efetividade social e as crises apenas deixariam mais transparente a natureza capitalista da regulação e intervenção social do Estado.

A crise do "Welfare State" é principalmente uma crise de legitimidade e de baixa capacidade de resistência da opinião pública

    Ausência de coesão social, baixa ou nula legitimidade dos programas sociais estatais, desconfiança em relação à capacidade e eficiência do Estado, fragmentação da opinião pública e a alta visibilidade de programas específicos de pobreza — para muitos autores há que se buscar nesse campo as raízes da crise que afeta hoje os Welfare States.
    Para Janowitz (1976), um dos aspectos dos dilemas atuais do Wetfare State reside nos problemas financeiros derivados da crise econômica. A incapacidade da economia em elevar a produtividade e a escalada inflacionária, aliadas à elevação das demandas sociais, impõe restrições à expansão dos gastos sociais.
    Entretanto, a argumentação central que desenvolve sobre a crise dos sistemas sociais públicos (enquanto concepção e desenho de práticas e instituições estatais) diz respeito à sua incapacidade de gerar um "sistema de legitimação auto-sustentado", acirrando, assim, o conflito sócio-político mais que criando consenso.
    As dificuldades essenciais dos Welfare States advêm de seus efeitos diretos sobre os regimes políticos e a inabilidade das elites políticas dos regimes democráticos em governar e efetivamente modificar as instituições básicas.
    Os dilemas do Welfare State constituem expressão dos limites no sistema vigente de "controle social", controle que no entendimento desse autor, diz respeito à habilidade de uma sociedade em engajar-se na auto-regulação, isto é, em criar uma ordem social que extirpe as formas e controles coercitivos.
    Janowitz enfatiza que as sociedades capitalistas contemporâneas fundam um complexo padrão de diferenciação social, que requer sistemas elaborados e sofisticados de socialização e controle. Os processos de industrialização e urbanização assim como as práticas e estruturas do Welfare Sfate são fatores de transformação da estrutura social e, portanto, de transformação das formas de participação e de conflitos políticos. O Welfare State, ao alterar a estrutura social e o padrão de desigualdades econômicas, condiciona a participação política, contribuindo assim para o surgimento de regimes políticos fracos. O comportamento eleitoral atual e seus paradoxos, a fragilidade das alianças, a ausência de maiorias políticas bem definidas, a crise de confiança refletem a ineficiência e envelhecimento dos padrões vigentes de coesão e "controle social". Para o autor, o que está em questão na crise do Welfare State é a "habilidade" em criar a coesão do todo social, isto é, o que está em jogo é a própria sobrevivência das sociedades democráticas.
    Para Hirschman (1980), a ampla hostilidade que se detecta, até mesmo por parte dos beneficiários, em relação aos serviços proporcionados pelo Welfare State emerge da crescente falta de confiança nas habilidades do Estado em "resolver" os problemas sociais. Rejeitando explicações do tipo estrutural para a crise do Welfare State, o autor defende a tese de que os sistemas sociais públicos enfrentam dificuldades de caráter temporário, cujas raízes estão, muito simplesmente, no fato de que a rápida expansão de certos bens e serviços em geral traz consigo uma deterioração de qualidade em relação às expectativas, o que produz insatisfação com a performance do setor público. Ora, se assim é, argumenta Hirschman, o problema não é essencial, uma vez que a perda de qualidade pode ser apenas temporária. Substituição de produtos e perda de qualidade estão, em geral, combinados com mercados não competitivos, ignorância dos consumidores e pouco conhecimento sobre as características mutantes dos produtos: esta combinação de     circunstâncias é, para Hirschman, precisamente a característica de certos serviços sociais em expansão considerável nos últimos tempos. O Welfare State enfrenta, pois, uma onda de hostilidade da opinião pública, passando portanto por uma fase difícil que está a exigir consolidação ou mesmo encolhimentos, alterações positivas que podem ocorrer a longo prazo.
    Interessado, de partida, em entender o baixo grau de resistência da opinião pública aos cortes em programas governamentais na área social, Mark Greenberg (1982) desenvolve interessantes considerações sobre o fato de que a própria estrutura dos programas condiciona apoios mais ou menos intensos: programas de caráter mais geral, universal, destinados ao conjunto dos cidadãos e respondendo (como foi nos anos 30) a um generalizado conhecimento da relação crise econômica-desemprego-perda de renda, respondem a ampla gama de interesses sociais e retêm apoio ao longo do tempo; programas concebidos como respondendo a necessidades específicas de grupos específicos, caracterizados como "pessoas incapazes" de algum tipo, têm um alto grau de visibilidade social, são vistos pela opinião pública como doação e caridade aos "pobres" e, do ponto de vista de apoio social, são bastante vulneráveis.
    Na argumentação de Greenberg, em situação de crescimento econômico com rígida estrutura de classes, a possibilidade de as pessoas tornarem-se pobres diminui: a pobreza aparece limitada àqueles que já são pobres. Diminui também a preocupação do público com programas projetados apenas para os "pobres". Mas em tempos difíceis, esta "filantropia" é vista como o primeiro gesto desnecessário a ser cortado. Esta é, para o autor, a grande diferença em termos da percepção da opinião pública, entre a emergência, nos EUA, do Social Security Act de 1935 e a emergência e montagem do "income support system" do pós-guerra. A não identificação entre os que participam dos programas e os que não participam tem gerado as atitudes que enfraquecem os programas de amparo. Para Greenberg, este é um resultado da própria concepção e estratégia de implantação desses programas, construídos de maneira a virtualmente assegurar sua perda de apoio numa economia estagnada. "...Sua construção gerou constituencies limitadas, alta visibilidade e uma multiplicidade decepcionante de programas nos quais a relação entre pobreza e economia era cuidadosamente ignorada" (p. 470).
    A fragmentação das clientelas, a ausência de comunidade, a concepção de programas baseados em categorias de necessidades e não em categorias de pessoas, a sua clara identificação — essas características contribuem para criar e reforçar o que Greenberg chama o "mito da generosidade pública" e seus efeitos perversos. O consenso em torno ao Welfare entrou em colapso como conseqüência previsível de sua própria estruturação.
    Esta tese de que programas específicos, de caráter assistencial, que não expressam direitos dos cidadãos nem efetivos compromissos redistributivos do Estado, geram baixo apoio e, portanto, podem ser cortados sem grandes resistências da opinião pública, é também enfatizada por outros autores (Rosenberry, 1982; Wilenski, 1976).

“WELFARE STATE”, CRISE E GESTÃO DA CRISE – PARTE 07

A crise do "Welfare State" deve-se ao colapso do pacto político do pós-guerra sobre o qual a erigiu-se

     Muitos são os autores que insistem na íntima associação que teria ocorrido e vingado do pós guerra até os anos sessenta entre propícias condições de crescimento e um pacto político interclasses, o que criou as possibilidades de montagem e expansão dos Welfare States, os quais vieram a reforçar aquelas condições econômicas positivas. Offe (1983) por exemplo, assinala um compromisso ou "acordo social" politicamente instituído a partir de formas não-radicais de confronto de classes, enraizando-se numa sorte de "troca de benefícios" entre empresários e mão-de-obra, cuja expressão poderia ser sintetizada no binômio crescimento-segurança social.
    A aceitação da lógica do lucro do mercado por parte dos trabalhadores e a concordância com políticas redistributivas por parte dos empresários teria estabelecido os fundamentos para coalizões políticas ou, pelo menos, criado condições mínimas de consenso a partir das quais processou-se a luta político-partidária. Nas condições de expansão econômica, o consenso interclasses possibilitou a emergência e a consolidação das políticas sociais do Estado voltadas tanto para cobrir os riscos aos quais estão expostos os trabalhadores quanto para reforçar e estimular a atividade econômica.
    A crise econômica, que se inicia nos anos 70, ao reduzir o crescimento, põe em cheque as bases políticas sobre as quais repousavam as práticas redistributivas estatais. Para Offe, nestas condições, voltam à cena os conflitos distributivos e restringem-se as margens de negociação. Está desfeito aquele que era o pilar fundamental do Welfare State, no plano da legitimação política, esgotando-se assim aquela particular forma de regulação estatal baseada em políticas sociais e numa política econômica de corte keynesiano.
    Também examinando as alterações sofridas pela base política de sustentação dos Welfare State — o movimento operário-social-demotrata — John Loque (1979) desenvolve um outro tipo de argumentação, enfatizando ser hoje o Welfare State vítima de seu sucesso, muito menos que de sua falência.
    Tomando os países escandinavos como exemplares Estados de Bem-Estar, Loque aponta para o fato de que a expansão dos programas de bem-estar coincide cronologicamente com a teoria econômica keynesiana e não é de pouco significado histórico que a revolução keynesiana teve lugar sob a égide de governos de esquerda. As medidas de bem-estar eram justificadas não apenas em termos de necessidades humanas mas também como parte de uma política keynesiana de revigorar a demanda dos consumidores. A meta social-democrata de pleno emprego imbricava-se com a alternativa de Keynes, assim como a virada em direção a maior planejamento coincidia com o desejo social-democrata em substituir a anarquia da produção por planejamento econômico limitado
    Apontando para o sucesso e os principais logros das medidas sociais-democratas de bem-estar, combinadas com a teoria keynesiana, Loque tenta demonstrar o modo através do qual o próprio desenvolvimento e reforço dos mecanismos do Welfare State introduzem elementos críticos. Em primeiro lugar afirma que, atingida praticamente a satisfação das necessidades materiais, muitos outros benefícios dificilmente poderiam ser distribuídos sem criar sérios problemas de "desincentivos": um certo equilíbrio teria sido atingido entre a demanda por novos benefícios e o não-desejo de pagar por eles, pelo menos através de impostos diretos e visíveis. Nesse sentido, tal como concebido, o Welfare estaria se aproximando de seus limites e as tax revolts dos últimos anos, nos países desenvolvidos, podem ser vistas sob este prisma.
    Em segundo lugar, pareceria estar sendo atingido um desequilíbrio na dinâmica interna do Welfare State no que tange à integração de interesses organizados na política econômica estatal e ao compromisso de não tocar na distribuição prévia de poder e riqueza. O peso das organizações sindicais, o crescente papel do Estado na barganha e fixação salarial, assim no conjunto das políticas, introduzem fortes elementos de coerção ou, no mínimo, de compromisso com as organizações, que cada vez mais partilham quase corporativamente das decisões de política. Ora, ".. a extensão da atividade estatal em direção ao que era previamente esfera autônoma de comportamento fez crescer o poder daqueles que manejam os instrumentos da autoridade central, ao mesmo tempo em que politizou novos aspectos da vida econômica e social" (p. 82). A estreita vinculação entre sindicatos e governo passa a mostrar problemas, seja na situação de crescente incapacidade de redistribuir a renda sem alterar a distribuição prévia, seja, no plano mais político, quando as bases operárias passam a perceber suas lideranças como comprometidas com a política, econômica, transmutando-se em arma do Estado na imposição de disciplina industrial.
    Finalmente, não há dúvida de que o sucesso do Welfare State foi construído, segundo Loque, à base de uma complexidade administrativa crescente, de ampliação dos graus de organização e coordenação estatais, e com a participação cada vez mais importante dos "especialistas". Situação que restringe a vida democrática. Ora, as fortes demandas por uma democracia participativa vêm causando impactos, desde os anos sessenta, a todos os níveis da sociedade e, também sobre as próprias organizações e partidos de esquerda que converteram-se de entusiastas do poder estatal em céticos, quanto à capacidade do Welfare State em cumprir seus objetivos, deixando de conceber a igualdade crescente tão-somente como habilidade a consumir através do setor público. Demandas por controle sobre as próprias condições de trabalho por parte dos trabalhadores, sobre decisões em relação à automação e racionalização do trabalho têm crescido e constituem novas e fortes expectativas de gerações já acostumadas a um nível razoável de satisfação de vida material. Realinhamentos democráticos dessa ordem passam a impor-se na agenda de Estados, pressionando a concepção de bem-estar que tradicionalmente manejaram.

A crise do "Welfare State" deve-se em princípio à sua incapacidade de responder aos novos valores predominantes nas "sociedades pós-industriais"

    Esta tese, em princípio, poderia integrar a tese da ausência de legitimidade. Entretanto, é atualmente, tão freqüente, que merece um lugar especial entre as distintas análises da crise das políticas sociais.
    Uma espécie de "revolução cultural" estaria sacudindo o mundo já industrializado, substituindo rapidamente os valores materiais. por uma gama de valores pás-materialistas, alterando substancialmente a estrutura da opinião pública e gerando demandas que as instituições políticas e sociais atuais estariam sem condições de atender. Em particular, constituiriam, hoje, os mais sérios obstáculos enfrentados pelas políticas sociais.
    Na Conferência sobre as Políticas Sociais nos Anos 80 organizada pela OCDE (1981), esta tese apareceu sob diversas formas e foi bem resumida por um de seus melhores opositores, Harold Wilenski: "Entre as idéias errôneas que estão em curso a respeito da evolução dos países democráticos modernos, há uma que encontra mais audiência nos debates públicos, segundo a qual, os temas antigos cederiam pouco a pouco o passo a temas novos; numa época em que os valores morais mudam profundamente, onde a ética do trabalho é progressivamente alterada pela aspiração à liberdade e ao direito a se exprimir, ao hedonismo e ao narcisismo, onde o raciocínio lógico se desfaz frente aos impulsos e ao êxtase, onde o culto da ciência e da técnica está denegrido, onde a ordem hierárquica rende-se diante da igualdade e da democracia fundada sobre a participação, onde se abandona uma competição rápida para se colocar em pauta formas de vida comunitária, onde a expansão econômica e o consumo a todo preço são combatidos por vias ecológicas e uma nova preocupação com qualidade da vida" (Wilenski, 1981, p. 185-6).
    Deixamos para a segunda parte deste trabalho a exposição da contra-argumentação de Wilenski. O que nos interessa aqui, é identificar as principais versões desta tese, no que diz respeito à questão da crise do Welfare State.
    Valores qualitativos "pós-materialistas", do tipo dos listados por Wilenski tendem a pressionar o Welfare State porque são de difícil equacionamento e atendimento tanto por causa da forma mercantil vigente da produção de bens e serviços sociais quanto pelo fato de que os custos de realização daqueles valores, em condições de diminuição do crescimento econômico, são por demais elevados — pense-se, em particular, na questão ecológica ou no equipamento para o lazer (Inglehart, 1977; Gershuny, 1978; Sefer, 1981).
    Um outro argumento enfatiza a questão do desenvolvimento da "economia subterrânea" nas condições da crise atual. A economia clandestina, profunda ou informal é explicada tanto como uma reação às elevadas cargas fiscais, quanto como nova forma social, não-mercantil, não-monetária, fundada em nova solidariedade e comunidade, de todo modo também subtraída à imposição fiscal. Ora, à medida que se sabe ser o poder de taxação um dos atributos essenciais do Estado, os comportamentos próprios da economia subterrânea são entendidos como atingindo diretamente a base de financiamento e a legitimidade política do Estado (Rosanvallon, 1981; Cazes, 1981).
    Estas oito teses constituem, a nosso ver a critérios que permitem sistematizar a ampla literatura sobre á crise do Welfare State; tanto do ponto de vista dos conservadores; quanto dos analistas de postura progressista.

‘WELFARE STATE”, CRISE E GESTÃO DA CRISE – PARTE 08

SEGUNDA PARTE
    Tentaremos, agora, examinar a literatura sobre a crise do Welfare State sob um outro prisma. O reordenamento das teses e argumentações será feito a partir, em primeiro lugar, do nível privilegiado pelos autores para compreensão da crise — o social, o político e o econômico. Por outro lado, reconstituiremos os argumentos principais e os debates implícitos ou explícitos nas teses; para tanto, privilegiaremos alguns autores que se destacam quer pela importância substantiva de seus argumentos, quer pelo grau de amadurecimento de sua reflexão, quer, finalmente, pela tentativa que fazem de indicar quadros alternativos de superação dos constrangimentos atuais que se impõem sobre as políticas governamentais de corte social.

A natureza da crise: análises e alternativas
Por uma nova forma de solidariedade social; a crise se origina e poderá se resolver nos planos sociais e políticos da sociedade
  

     Já chamamos a atenção, na Primeira Parte, para a crescente força da tese que vê a raiz da crise do Estado do Bem-Estar nos valores e novos comportamentos sociais emergentes nas sociedades atuais.
    Talvez seja Pierre Rosanvallon (1983) quem expõe e examina com maior profundidade esta tese, superando as formulações simplistas e cheias de ambigüidades sobre os "valores pós-materialistas" (Cazes, 1981).
    Rosanvallon parte do diagnóstico evidente da crise financeira que incide sobre o Estado-Providência: o desequilíbrio crescente entre receitas e despesas. Entretanto, rejeita a tese de que seja esta, a financeira, a verdadeira crise, até porque, segundo ele, teoricamente há soluções: alterações ria relação salários diretos indiretos; diminuição da elevação das cotizações sociais compensadas por crescimento da carga fiscal etc. O problema, afirma, é que soluções ,financeiras desta natureza implicam modificações do equilíbrio social existente entre indivíduos, categorias sociais e agentes econômicos. .Aí reside, verdadeiramente, — o bloqueio: o que se designa, geralmente, pela expressão "impasse financeiro" é, antes de tudo, o problema do grau de socialização tolerável de um certo número de bens e serviços (p. 16). O verdadeiro bloqueio ao Estado-Providência é, afinal, de ordem cultural e sociológica: a crise é de um modelo de desenvolvimento e crise de um sistema dado de relações sociais. A pergunta que deve ser respondida, então, é a seguinte: o Welfare State continuará sendo o único suporte dos programas sociais e o único agente da solidariedade social?
    Ao reconhecer como todos, inclusive os liberais, de que há problemas de financiamento, Rosanvallon critica, entretanto, a postura conservadora que opõe, de modo quase sempre encantatório, as virtudes do mercado ao Estado redistribuidor. Se redução positiva da demanda social ao Estado há que se fazer, será entretanto, não através de um retorno ao mercado, antes pela implantação de novos métodos de progresso social, complementares ao Estado-Providência, suscetíveis de limitar o crescimento mas permitindo servir de base a uma nova etapa do desenvolvimento social. Também aos sociais-democratas dirige sua crítica: ao se fecharem numa posição estatista de solidariedade, serão incapazes de encontrar saídas: "... crise do Estado-Providência e crise do modelo social-democrata tradicional caminham de par a par" (p. 10).
    As premissas de que parte Rosanvallon para pensar a crise do Estado-Providência são as seguintes:
    O Estado-Providência simultaneamente gera e funda-se no indivíduo como categoria social e política. Ao mesmo tempo, como Estado fiscal que é, não pode existir sem o desenvolvimento da economia e sociedade de mercado, isto é, sem a afirmação do Indivíduo como categoria econômica central e com o máximo de autonomia possível (em relação a comunidades e localidades prévias). Nesse, sentido, a solidariedade fundada sob a égide do Estado-Providência é aquela de uma sociedade que vive como um composto de indivíduos: trata-se de uma solidariedade mecânica, que se efetua pela intermediação do próprio Estado, tornando opaca as relações sociais reais.
    Ora, a crise que vive hoje o Estado enraíza-se nos desdobramentos perversos de suas próprias contradições, seja aquela própria da relação Estado-igualdade, no plano dos valores, seja a relacionada com a fragmentação social.
    No plano intelectual e dos valores, trata-se de entender que o valor de igualdade, fundamento do Estado, está em crise: a pergunta que se faz o autor é, aliás, a de se a igualdade como um valor, tal como concebida e realizada sob a égide do Estado, tem ainda futuro. Isto porque há uma contradição de base entre igualdade política e civil e igualdade econômica. No domínio político, a demanda por igualdade traduziu-se pela determinação de uma norma idêntica para todos, pela eliminação de diferenças de estatutos civis ou políticos. No plano econômico, diferentemente, a demanda por igualdade econômica e social apresenta-se como vontade da redução das desigualdades. O paradoxo central das sociedades democráticas encontra-se exatamente nessa relação entre a vontade de redução da desigualdade e na negativa, também presente, de uma igualdade idêntica no plano econômico e social, isto é, no reconhecimento das diferenças. Esta é, para o autor, a fissura intelectual, cultural, que corrói o edifício da cultura democrática e igualitária.
    Mas a crise é também crise dessa solidariedade mecânica fundada pelo Estado: seus sinais podem ser encontrados na corporativização social, no desenvolvimento de reações de categorias estreitas em matéria de impostos, salários etc. As reivindicações dos indivíduos e grupos distanciam-se cada vez mais do sentido social de seus efeitos. O grande exemplo é o da "economia subterrânea": trata-se de uma retratação social negativa, que afeta as bases tributárias do Estado e, portanto, tem efeitos sociais perversos, mas trata-se também de uma vontade de desenvolver formas de solidariedade direta e modos autônomos de atividades. Nesse sentido, "... a crise do Estado-Providência corresponde aos limites de uma expressão mecânica da solidariedade social" (p. 44).
    Rosanvallon chama a atenção para algumas causas que percebe estarem atuando no sentido das rupturas e limites que assinalou A própria idéia de "proteção" tende a se tornar cada vez mais central, mas a força de demanda por segurança, por exemplo (contra acidentes nucleares ou por força supranacional etc.) tende a relativizar a demanda por igualdade e democracia. Em segundo lugar, a crescente distância entre um crescimento econômico lento e o aumento das despesas públicas está se fazendo sem movimentos sociais de expressão. Antes, cada avanço do Estado esteve ligado a uma forte significação social, que punha em xeque seja a coesão social — o contrato devia então ser reformulado — seja, em guerras, a própria sobrevivência de todos. Hoje, os mecanismos de redistribuição crescem sem intenção política deliberada, o que torna cada vez mais ilegítima, politicamente, a redução automática de desigualdades. E por isso mesmo seu custo econômico aparece para todos como sem nenhuma compensação política.
    Ligado a este fato, está um outro, o de que a redistribuição, ao operar (teoricamente) sobre grandes e pequenas desigualdades (aliás, principalmente sobra as pequenas), encontra reações que mostram os limites do esquema "fazer com que outros paguem", a emergência de um dado sentimento de injustiça, a paradoxal mescla entre a "paixão pela igualdade" e o desejo da diferença.
    Finalmente, a demanda pelo Estado-Providência não aparece como o único meio de proteção social: numa sociedade cada vez mais fragmentada, oligopolizada mas também "balcanizada" pela pressão das estruturas econômicas e as de negociações, a proteção passa não somente pelo Estado, mas também pela busca de localização de cada um em segmentos (ou oligopólios) mais favoráveis. Por sua vez, o Estado, incapaz de se fundar sobre um compromisso social de conjunto, multiplica os arranjos sociais categoriais, contribuindo para a diminuição de sua legitimidade: "O Estado-Clientela começa a se edificar no Estado-Providência" (p. 40).
    Em resumo, a crise da solidariedade provém de um deslocamento mecânico do tecido social, de uma decomposição: tudo se passa. como se não houvesse mais o "social" entre Estado e os indivíduos. É por isso que, para o autor, a crise do Estado-Providência deve ser apreendida a partir das formas de socialidade que ele induz e não, ser reduzida ao grau da "socialização da demanda", isto é, às porcentagens de tributações obrigatórias toleráveis.
    Nem podem as saídas para a crise serem pensadas nos estreitos quadros das alternativas estatização x privatização. Fazer crescer a socialização (nos quadros do Estado) ou encontrar um novo equilíbrio fundado na extensão da privatização, desenham tão-somente dois cenários possíveis, o social-estatista e o liberal. No caso da alternativa social-estatista, a elevação de tributos requerida é não só difícil na crise como pode provocar uma fragmentação maior ainda, da sociedade; por mecanismos de compensação e autodefesa, pode-se antecipar um maior desenvolvimento da "economia subterrânea", do "trabalho negro", maior segmentação do mercado de trabalho, a consolidação de uma verdadeira "sociedade dual". Com a alternativa liberal, o efeito é uma volta atrás na redistribuição já avançada, uma verdadeira regressão social afetando a maioria das pessoas. O que supõe a presença de um Estado forte, capaz de enfrentar as resistências sociais, mas por isso mesmo dotado de um nível muito baixo de legitimidade política.
    Rejeitar este quadro estreito significa, para o autor, o esforço de se repensar as fronteiras e as relações entre o Estado e a sociedade. As lógicas unívocas da estatização (serviço coletivo = Estado = não-mercantil = igualdade) e da privatização (serviço privado = mercado = lucro= desigualdade) devem ser substituídas por uma tríplice dinâmica articulada da socialização, da descentralização e da autonomização:

  • "Desburocratizar e racionalizar a gestão dos grandes equipamentos e funções coletivas: é a via de urna socialização mais amena. Grandes esforços devem ser feitos neste domínio para simplificar e melhorar a gestão, mas esta não é uma via inovadora em si mesma;
  • "Remodelar e reorganizar certos serviços públicos de modo a torná-los mais próximos dos beneficiários: é a via da descentralização. Visa a fazer crescer as tarefas e responsabilidades das coletividades locais nos domínios sociais e culturais;
  • "Transferir às coletividades não públicas (associações; fundações, agrupamentos diversos) as tarefas de, serviço público: é ac via da autonomização. É esta a via a que pode ser a mais nova e interessante para responder as dificuldades do Estado-Providência e enfrentar as necessidades sociais do futuro.

     "(...) Mais globalmente, esta alternativa à crise do Estado-Providência não terá sentido a não ser que se inscreva no tríplice movimento de redução da demanda do Estado; reinserção da solidariedade na sociedade e produção de uma maior visibilidade social" (p. 112).
    A partir desta proposta, o autor desenvolve algumas considerações interessantes. Para ele, a redução da demanda ao Estado não deve ser confundida com uma, visão instrumental do Estado, através dos conceitos de Estado-mínimo ou Estado-socialmente ativo. Passa antes por algumas condições tais como a produção de um novo direito não centrado na bipolaridade indivíduo-Estado, mas que possa recobrir as formas não-estatais de socialização: o reconhecimento de grupos de vizinhança, de bairro, redes de ajuda etc. Do mesmo modo que sublinha a necessidade de se reconhecer um direito de substituibilidade do estatal pelo social no domínio de certos serviços coletivos (o exemplo que dá é o das creches), o que significa que o Estado reconheça, sob forma de dedução fiscal, os serviços coletivos levados a cabo por grupos sociais. Auto-serviços e serviços públicos pontuais de iniciativa local, ao multiplicarem-se, reduzem a demanda ao Estado.
    Tornar as ligações intermediárias da composição social mais numerosas e múltiplas, reinserir os indivíduos em redes de solidariedade direta, tornar assim mais densa a sociedade, constituem formas de reaproximação da sociedade consigo mesma. Não é o caso, para Rosanvallon, de cair na nostalgia de imaginar um retorno à forma comunitária como alternativa para a "dessocialização" da sociedade de mercado. O próprio tecido tem dado sinais de resistir à fragmentação, produzindo formas, ainda que parciais e insuficientes, de reaproximação social: redes subterrâneas de solidariedade familiar ou grupal, apropria economia informal constituem formas de socialização transversal que apontam para a possibilidade de uma reinserção da solidariedade na sociedade. Reconhecê-los constitui um passo inicial. E a condição primeira do desenvolvimento da socialidade de novo tipo reside no aumento do tempo livre. Nessa perspectiva, a redução do tempo de trabalho não é apenas uma possibilidade dada pelas condições atuais da produção, ou uma exigência econômica para a redução do desemprego: é a condição para a aprendizagem e efetividade de novos tipos de vida, aqueles envolvidos pelos serviços mutuais, pela ampliação das atividades de vizinhança etc.
    Finalmente, o autor insiste nos mecanismos já dados que permitem tornar mais visíveis as relações e fins sociais, desde. aqueles que tornariam .mais transparentes os montantes e finalidades das taxações, por exemplo, como outros que permitiriam fazer emergir de modo mais localizado e concreto as necessidades e aspirações. Até mesmo um organismo voluntário de informação sobre o florescimento das iniciativas auxilia neste aspecto e amplia a troca de experiência. (O exemplo é o do Mutual Aid Center da Inglaterra)
    Terminemos esta exposição expondo, agora, as considerações mais gerais e políticas que faz o autor. A seu ver, as transformações em curso assim como as projeções sociais possíveis indicam a falência do quadro de compromisso keynesiano que regula as relações entre o econômico e o social, há mais de trinta anos, nas sociedades industriais democráticas. Este modelo esteve fundado sobre o Estado-Providência e sobre as negociações coletivas. Mas entrou em crise porque está sendo desmantelado o espaço social homogêneo sobre o qual se montou, o que põe em colapso o Estado e conduz à perda de substância as formas clássicas de negociações coletivas. E tudo isso se faz friamente, num clima de ceticismo, dúvida, sem grandes e espetaculares choques e resistências. Desconfiança que num primeiro momento se exprimiu por alternativas autogestionárias tanto na ótica liberal quanto libertária. Num segundo momento, o próprio pano de fundo sociológico do modelo keynesiano, — centrado numa representação bipolar de classe social — se rompeu: novos campos de conflito social se irrompem, nas relações homens/mulheres, dirigentes/dirigidos, Estado/religiões etc., não redutíveis aos atores tradicionais do enfrentamento de classes. "Nem o Estado-Providência nem as negociações coletivas constituem instrumentos de regulação adequados desses fenômenos". (p. 132) Nos anos 80, complica-se a situação pela ocorrência de uma verdadeira retração do social: rupturas no mercado de trabalho, busca, de alternativas individuais entre os múltiplos segmentos, estatutos, regulamentações etc. Fenômeno ambíguo, ele é ao mesmo tempo sinal de uma retração reacionária, de um modo entrópico de vida, mas também emergência de novas relações sociais marcadas pela busca de maior proximidade social, pela crítica a um "coletivismo" pesado.
    É a crise e esgotamento de um modo de regulação social que está em jogo, sendo parcialmente substituído por uma forma pulverizada de regulação de tipo intra-social (fundada nas relações indivíduo/sociedade, cujos agentes principais de regulação são os indivíduos, as famílias, os grupos de vizinhança, atuando num espaço múltiplo e não territorializado) ou pela forma autogestionária (fundada nas relações Estado/sociedade civil, cujos agentes sociais ou os grupos de base, atuando num espaço descentralizado na sociedade civil e centralizada na sociedade política). Que estes modos de regulação emergentes possam conduzir a novas perspectivas sociais ou políticas ou que levem ao individualismo e ao liberalismo, não está determinado nem social nem politicamente. Depende inclusive do movimento de superação do modelo keynesiano de regulação, o que, para o autor, está na dependência de as formas e organizações sociais-democratas e socialistas se repensarem e se posicionarem na crise.
    Se, numa ótica defensiva, a perspectiva social-democrata tão-somente pretender retomar o espaço e os mecanismos keynesianos de regulação, condenar-se-á ao fracasso, permitindo que forças neoliberais recuperem em seu proveito a ruptura das formas de compromisso ainda vigentes, abrindo espaço para maior corporativização e manutenção de uma maquinaria morta: "Se nenhuma alternativa positiva for proposta por aqueles que mais se beneficiam do EstadoProvidência, iremos em direção a uma sociedade bastarda, na qual o reforço dos mecanismos de mercado coexistirá com a manutenção de formas estatais rígidas e o desenvolvimento de uma corporativização social parcial" (p. 136).
    Para Rosanvallon, a alternativa será, nos termos em que já descreveu, a criação de um espaço pós-social democrata que repouse na redução do papel do modelo keynesiano e na sua combinação com modos de regulação autogestionários e intra-sociais.
    Trata-se de definir um novo compromisso social, que contemple a possibilidade de maior flexibilidade econômica, uma certa desburocratização do Estado, assim como o reconhecimento maior das pessoas, dos grupos, garantidos por atores coletivos (os sindicatos) e pelas instituições. Triplo compromisso, na verdade, porque significa:

  • compromisso de ordem sócio-econômica com o patronato, envolvendo redução e reorganização do tempo de trabalho, assim como ampliação dos procedimentos de negociação coletiva;
  • compromisso de ordem sócio-política com o Estado; aumento das possibilidades de experimentação e de substituição por auto-serviços da demanda ao Estado; aumento das liberdades civis contra mais estabilização do Estado-Providência a seu nível atual;
  • compromisso da sociedade consigo mesma; trata-se de um compromisso democrático, que tem como objetivo desbloquear o Estado-Providência e de permitir a expressão de solidariedades negociadas, num quadro de ampla visibilidade social.

     O interesse da análise de Rosanvallon está principalmente no fato de que ordena e sistematiza um conjunto de teses e observações já aventadas por todos quanto têm chamado a atenção para a natureza social e política da crise atual, desde o nível das rupturas no próprio tecido social Bestado pelo capitalismo, até as restrições que se têm manifestado ao nível político, em termos de consenso e compromissos. Por outro lado, é bastante interessante a forma como pensa a natureza das alternativas já possíveis de reestruturação do campo social e de suas relações com o Estado.
    A propósito, entretanto, do esgotamento do modelo vigente de regulação e das formas conhecidas de negociações coletivas, vale a pena lembrar o repto que faz Wilenski (1981) às teses da suplantação do quadro atual pelos valores pós-materialistas ou pelo esgotamento das condições de negociação política. Sigamos este autor na apresentação que faz de suas teses:

  • A distinção entre "valores pós-materialistas" da sociedade pós-industrial e os "valores materialistas" da sociedade industrial não contribui com nenhum esclarecimento sobre os obstáculos que entravam a política social nos anos 80.
  • As escolhas entre a proteção do emprego, os seguros sociais, a igualdade e a democracia fundada na participação, de um lado, e a produtividade do trabalho, o crescimento econômico e medidas relativas às realizações da economia, de outro, não são tão rígidas como deixam supor muitos analistas.
  • Quando novos valores morais aparecem, é possível, sem grandes custos suplementares, mas com grandes vantagens, modificar o Estado-protetor e orientá-lo em novas direções mais conformes com as novas questões da ordem social e as reivindicações de participação. Entretanto, os países democráticos nos quais as negociações entre empregadores, trabalhadores e os poderes públicos têm uma estrutura mais "corporativa" estão muito melhor colocados que outros para manter ou obter o consentimento popular que é indispensável se se pretende criar um Estado protetor mais humano e mais eficaz, conservando realizações econômicas satisfatórias (Wilenski, 1981, p. 215-216, 1975, 1976).

    Ao desenvolver estes argumentos, Wilenski sustenta, em primeiro lugar que, no que diz respeito à estrutura da opinião pública, as pesquisas têm indicado uma permanência do apoio às políticas sociais, as diferenças se dando muito mais entre partidos políticos; o que significa que homens e partidos políticos podem mobilizar a opinião pública em sentido mais ou menos favorável às medidas de proteção social, explorando seja a vontade manifestada de que a população continue contando com os serviços sociais, seja a crescente resistência a pagar por tais serviços.
    A seguir, Wilenski se pergunta qual é o gênero de economia política mais capaz de criar o consentimento popular necessário à política social? A resposta, segundo ele, passa por uma diferenciação entre os países. Distingue, em primeiro lugar, os países de democracia corporativa, tais como Países Baixos, a Bélgica, a Suécia, a Noruega, a Áustria e a República Federal Alemã. Este grupo caracteriza-se pelo jogo de influências recíprocas que se exercem entre grupos de interesse fortemente organizados e centralizados, em particular, as associações de trabalhadores, de empregados e as profissionais, que todo governo forte ou moderadamente centralizado tem que consultar, quer esta obrigação decorra de uma lei ou de um acordo oficioso. É por via de negociação que estes países logram criar um consentimento geral sobre as principais questões da economia política moderna, tais como o crescimento econômico, os preços, os salários, o desemprego, o balanço de pagamentos e a política social. "Nesses países, a política social em certa medida se confunde com a política econômica geral, numa época em que o crescimento prossegue lentamente e as aspirações tornam-se mais ambiciosas: trabalhadores que buscam melhorar seus salários, suas condições de trabalho, sua proteção social, e, em menor medida, criar uma democracia fundada sobre a participação, são obrigados a levar em conta a inflação, a produtividade e os imperativos do investimento. Os empregadores, que buscam melhorar os lucros, a produtividade e o investimento, são obrigados, pelo seu lado, a levar em conta a política social (p. 221). Segundo pesquisas que levou a cabo (Wilenski, 1975, 1976), o autor afirma serem estes países que melhor têm se saído na gestão da crise, assim como sus-tenta a tese de que nenhum país democrático rico poderá obter consentimento mínimo necessário para implementar medidas econômicas e sociais eficazes se não estiver dotado de fortes estruturas de negociação.
    No segundo grupo de países, Wilenski distingue aqueles caracterizados por uma democracia corporativa sem plena participação dos trabalhadores. Estariam neste caso o Japão, a França e talvez a Suíça, onde em graus diversos, têm sido estabelecidos procedimentos quase públicos de negociação para que a indústria, a agricultura, o comércio e as associações profissionais possam exercer sua influência em comum. Permite-se coordenar e planificar em parte as medidas de política social e econômica, mas até agora, as federações sindicais são mantidas relativamente à distância. Ainda que haja diferenças no grau de autoridade dos administradores e burocratas do Estado, entre os três países, são aqueles que ocupam, entretanto, a situação mais central na definição e aplicação das políticas governamentais. Na visão prospectiva de Wilenski, estes países estão em condições de obter, presentemente, bons resultados econômicos sem, entretanto, adotar medidas explicitas de melhoria da igualdade econômica. Frente, entretanto, às dificuldades econômicas e à possibilidade de elevação da capacidade reivindicatória das massas, ou deverão introduzir um grau maior de participação dos sindicatos, como os países do primeiro grupo, ou serão conduzidos a optar por maior autoritarismo e recorrer a meios de coerção para manter sob mão-forte o movimento sindical, que tenderá a manifestar crescente descontentamento.
    Na terceira categoria encontram-se países tais como Estados Unidos, Inglaterra, .Canadá e Austrália, cujas estruturas de negociação são as menos corporativas e são caracterizados por uma economia política fragmentada e descentralizada. Nenhum desses países avançou muito, segundo Wilenski, na instauração de um Estado-protetor. Defesa, na melhor das hipóteses, de objetivos pessoais e particularizados, e imobilismo social, são características dos grupos de interesses destes países.
    Para responder sobre as melhores possibilidades de gestão da crise; Wilenski apóia-se exatamente nesta distinção prévia sobre a estrutura política. São os países de democracia corporativa os que têm apresentado maiores e mais pesadas despesas sociais e que têm, segundo ele, também apresentado resultados iguais ou superiores em relação aos outros, seja qual for o critério utilizado para medir suas realizações econômicas. Em nenhum desses países assistiu-se a movimentos contra os impostos tais como aqueles que marcaram as campanhas de Glistrup na Dinamarca, Powell e Thatcher na Inglaterra, Wallace e Reagan nos Estados Unidos. E isso se deve ao fato de que os países do primeiro grupo têm sido capazes de obter o consentimento popular para a consecução de suas políticas econômicas e sociais. "Uma das razões que explicam porque os países de democracia corporativa, mantendo pesadas despesas sociais, têm atingido resultados econômicos um pouco melhores que os outros, diz respeito ao fato de que eles preferem em geral uma política ativa do mercado de trabalho e medidas de proteção ao emprego, muito mais do que outras disposições, talvez mais onerosas, em vigor nos países menos corporativos e menos avançados na instauração de um Estado-protetor, e que se limitam a fornecer uma ajuda social, sem contribuir minimamente a uma utilização racional dos recursos humanos" (p. 225).
    No que se refere à resistência aos impostos, são estes também os países que lograram estruturas de tributação mais equilibradas, exatamente porque estabelecem sua política fiscal e suas estimativas de despesas por meio de procedimentos de deliberação que lhes permitem atenuar as conseqüências de ordem política em colaboração com os grupos interessados. Desde os anos 70, chegou-se à convicção, nestes países, "... de que não podiam se permitir decidir da progressividade ou regressividade do sistema fiscal sem levar em conta as despesas sociais, que formam o segundo elemento da equação. Antes de poder concordar com despesas, é preciso perceber as somas necessárias a seu financiamento: é, portanto, por pura necessidade de ordem política, e também porque dispõem do aparelho político necessário para responder a esta necessidade, que chegam a melhor equilibrar a estrutura de impostos, isto é, a reservar um lugar mais importante aos impostos indiretos e às cotizações para a proteção social" (p. 226).
    Finalmente, para o autor, é importante saber até onde os Estados-protetores dos países de democracia corporativa podem estabelecer políticas novas, mais adaptadas às condições atuais e às demandas contemporâneas. É certo que, aparentemente, o pesado aparelho centralizado e burocratizado de negociação é pouco flexível para se mover. Entretanto, parecem ser estes mesmos países que estão avançando na ampliação de suas políticas sob formas que ao mesmo tempo conduzem à contenção de custos, propõem remédios aos problemas novos e contribuem com vantagens sociais reais. Os melhores exemplos ficam, para o autor, em torno da evolução que apresentaram em relação aos seguros contra acidentes do trabalho, às alocações de desemprego e às alterações nas pensões por aposentadoria. As maiores dificuldades continuam sendo as referentes aos altos custos do atendimento médico, dado o forte poder dos grupos de interesses aí .estabelecidos e que se opõem às transformações deste setor visando a privilegiar a medicina preventiva, as campanhas de educação alimentar e a cultura física.
    Em seu conjunto, a argumentação de Wilenski é bastante interessante, principalmente porque convida a evitar uma supervalorização da questão das mudanças de valores, assim como introduz fortemente a questão da estrutura política na análise e compreensão das políticas econômicas e sociais na crise. De uma outra perspectiva, Schmidt (1982) contribui com instigantes resultados de pesquisas que ora apóiam, ora contestam ou introduzem nuances nas observações de Wilenski.
    Em primeiro lugar, o autor chama a atenção para o fato de que a composição dos governos não tem sido um fator decisivo na definição das prioridades e das políticas governamentais na crise. Segundo dados de sua pesquisa, não haveria uma clara linha divisória entre as políticas, adotadas por governos sociais-democratas e outros que não o são. Isto, entretanto, não significa que composições partidárias de governo não sejam importantes nem que os decisivos seriam tão-somente os problemas econômicos. Tanto um fator quanto outro só ganham pleno sentido quando combinados com a força dos sindicatos de trabalhadores e patronais, a ordem e regulação do conflito de classe (formas mais ou menos corporativas), o grau de harmonia entre o encaminhamento dos conflitos políticos na arena industrial e na dos partidos, o grau em que "valores solidários" caracterizam a cultura política. A partir da análise combinada desses elementos, Schmidt afirma que nações sob governos sociais-democratas e, mais importante, com equilíbrio de classes na arena industrial e no sistema partidário, têm apresentado maior grau de "governabilidade" nas condições da crise atual. A seu ver, então, as mais importantes barreiras que restringem o raio de ação das políticas que contribuem para regular o conflito entre trabalho, capital e clientelas do Welfare State não são de caráter econômico ou tecnológico, mas sim e também de caráter político; a grande dificuldade sendo a de compreender os paradoxos do sucesso de políticas de bem-estar e perdas eleitorais significativas. Observa que a relação entre o grau de efetividade das políticas sociais, de um lado, e o apoio político e a paz social, de outro, não guardam relação unívoca. É possível constatar que não houve espetaculares reações políticas à elevação das taxas de desemprego e redução de medidas redistributivas: isto pode em parte ser explicado seja pelos altos níveis de proteção já atingidos, seja porque os impactos negativos do desemprego e dos cortes têm caído sobre grupos socialmente desorganizados, em geral que nunca entraram na força ativa de trabalho; mas pode também dever-se a uma alteração de valores e atitudes em relação ao trabalho, lazer e emprego.
    Também os paradoxos eleitorais desfazem a idéia de uma relação necessária entre o sucesso no manejo da economia/generosos gastos sociais com apoio e reeleição. Em conjunto, os comportamentos eleitorais nas democracias industriais avançadas têm se mostrado erráticos (perda de eleições na Suécia e na Noruega e na Itália em 81, respectivamente, e reeleição na Alemanha e na Itália em 80 e 79, respectivamente).
    É de chamar a atenção um certo "zigue-zague" que permeia a literatura. Aparentemente, a crise atual pôs em cheque não apenas as práticas de intervenção social do Estado como as próprias teorias e concepções que as fundamentaram: crise do Welfare mas também da visão social-democrata da política; crise econômica geral mas também corrosão dos mecanismos de política e da própria concepção keynesiana da dinâmica econômica e da relação entre Estado e economia. Por outro lado, ressurgem com alguma força — produzindo sorrateiros encantos em muitos ou soando como novidade — as teses liberais, tanto econômicas quanto políticas: não à regulação econômica pelo Estado, não à sua intervenção social, sim ao Estado reduzido, encolhido, mínimo. Tudo, é claro, em nome da maior liberdade, da ampliação da democracia. Uma dupla ilusão permeia esta visão: reversão do Estado e reversão da economia às condições do livre mercado (sem monopólios). Finalmente, surgem resistências ao conservadorismo econômico e político: veja-se a defesa que faz Wilenski da estrutura política de negociações que marcou a prática social-democrata; ouça-se a crítica de Rosanvallon à possibilidade de que conteúdos de liberalismo logrem permear a crítica de esquerda assim como as alternativas autogestionárias frente ao Estado centralizado, regulador e interventor. No plano da análise econômica, o panorama não é diferente.
    A concepção e a prática conservadoras reagiram à crise retomando, num movimento quase anacrônico, as teses liberais mais estreitas, até mesmo bastardizando-as, como parece ser o caso da supply-side economics. Por seu lado as concepções progressistas e críticas, que haviam apontado para a insuficiência da solução keynesiana para a reversão da situação atual, passaram a uma postura mais ofensiva. Frente ao conservadorismo, frente ao monetarismo, frente aos da supply-side economics, moveram-se numa retomada vigorosa de Keynes — e dessa forma pretende-se enfrentar também o keynesiano bastardo — e foram à frente, insistindo na insuficiência da análise keynesiana para encontrar alternativas para a crise atual.
    Tanto no plano econômico quanto político o desafio às teorizações continua. No item logo a seguir, expomos aquelas análises que, no plano econômico, são as mais significativas e exemplares das diferentes posturas frente à crise e às políticas sociais.