sexta-feira, 11 de abril de 2008

Evans-Pritchard – Os Nuer (caps. 4, 5, 6)

O clã Nuer é o maior grupo de agnatos que traçam sua descendência a partir de um ancestral comum, entre os quais está proibido o matrimônio e cujas eventuais relações sexuais são consideradas incestuosas; o relacionamento existente dentro de uma linhagem ou com outros clãs pode ser colocado em termos genealógicos: um clã é um sistema de linhagens e uma linhagem, um segmento genealógico de um clã.

Uma linhagem é um grupo de agnatos vivos os quais descendem do fundador dessa linha determinada; inclui pessoas mortas mas só são significativas enquanto sua posição genealógica explica o relacionamento entre os vivos.

Clãs e linhagens têm nomes, possuem símbolos rituais variados e observam certas relações cerimoniais recíprocas.

O parentesco agnático é sempre um relacionamento entre grupos de pessoas e é somente um relacionamento entre pessoas em virtude destas serem membros de grupos. Os grupos políticos e os de linhagem possuem certa correspondência, com freqüência têm o mesmo nome.

A linhagem é um termo relativo, dado que o alcance de suas referências depende da pessoa determinada que é escolhida como ponto de partida ao se traçar a descendência. As linhagens são grupos de uma profundidade de ao menos três gerações.

O clã Nuer (altamente segmentado) possui muitas características da estrutura tribal. Suas linhagens são grupos distintos apenas quando em oposição mútua. Os valores de linhagem são essencialmente relativos, tais como os valores tribais. Na teoria, todo homem é um fundador em potencial de uma linhagem, mas, na realidade, as linhagens originam-se de muitos poucos nomes.

A forma estrutural dos clãs permanece constante, enquanto que as linhagens reais são muito dinâmicas. As linhagens são grupos de agnatos vivos e a distância existente entre eles varia de acordo com as posições relativas que cada um ocupa na estrutura do clã.

Um clã Nuer é um sistema de linhagens. Os Nuer estão familiarizados até certo ponto com a amplidão total de seus relacionamentos genealógicos. Para um Nuer é necessário saber a qual linhagem determinado homem pertence. O relacionamento existente entre uma linhagem e outras do mesmo clã não é igualitário. Um sistema de linhagens segundo os próprios Nuer é: quando desenham no chão várias linhagens relacionadas eles as apresentam como várias linhas que partem, formando diversos ângulos, de um ponto comum. Eles vêem (sistema) enquanto relações concretas entre grupos de parentes dentro de comunidades locais, mais do que enquanto uma árvore de descendentes.

As linhagens Nuer não são consideradas cooperativas e os membros de uma linhagem os quais vivem numa área associada a ela consideram um grupo residencial e o valor de linhagem funciona através do sistema político. Cada aldeia Nuer está associada a uma linhagem e a comunidade da aldeia é identificada com eles.

Linhagens são segmentos dos clãs dominantes nas diferentes tribos (possuem a maior importância política). Em tribos e seções tribais existe muita mistura de linhagens dentro das comunidades. Segundo os Nuer as disputas e as lutas entre as linhagens levaram a sua dispersão, mas a migração levou a uma maior dispersão.

Dois fatores talvez tenham contribuído para a dispersão das linhagens, além da migração, das lutas, casamento interno etc. Os Nuer são fundamentalmente um povo de pastores com predominantes interesses pastoris e não se sentem ligados a nenhum lugar em especial; os mortos são enterrados rápida e toscamente em túmulos não visitados e esquecidos, raramente são feito-lhes sacrifícios.

Assim, os Nuer sempre se sentiram livres para perambular como bem lhes agradasse, e se um homem se sente infeliz muda-se para um setor diferente da região e vai morar com alguns parentes. Dificilmente um homem parte sozinho (seus irmãos constituem uma corporação e, se são filhos da mesma mãe permanecem juntos), normalmente vão para a casa de uma irmã casada (têm certeza de serem bem recebidos). Um homem o qual muda de residência torna-se assim membro de uma comunidade diferente e entra em relação íntima com a linhagem dominante daquela comunidade.

Uma linhagem Nuer nunca se funde inteiramente com outro clã: há certas práticas rituais que não podem ser partilhadas. Uma linhagem Nuer nunca é inteiramente absorvida ou perde sua herança ritual; ela só pode misturar-se com uma linhagem colateral do mesmo clã.

Enquanto os valores da linhagem controlam relações cerimoniais ente grupos de agnatos, os valores comunitários controlam relações políticas entre grupos de pessoas vivendo em aldeias, seções tribais tribos separadas.

É apenas a última associação entre uma tribo e seu clã dominante que torna politicamente importante o princípio agnático na estrutura da linhagem.

Existe em cada tribo uma relação definida entre sua estrutura política e o sistema de clãs. Cada um de seus segmentos tende a associar-se com um segmento da tribo. O clã dominante forma uma moldura (na qual é construído o sistema político da tribo).

O sistema de linhagens do clã dominante constitui um esqueleto conceitual (sistema de valores) ligando os segmentos tribais e fornecendo a linguagem em que suas relações possam ser expressas e dirigidas:

  • nem todo o clã ocupa uma posição superior numa tribo;
  • nem todo membro de um clã Nuer vive na tribo onde ocupa posição de superioridade;
  • um clã não é preponderante na tribo em que é dominante;
  • um homem só é um aristocrata na tribo em que seu clã tem uma condição superior e esta condição depende do fato de se residir em terras possuídas pelo clã (exceto quando o clã é dominante em duas ou mais tribos).

Quando os chamamos de aristocratas não pretendemos dizer que os Nuer os consideram “superiores” pois a idéia de alguém predominando sobre os demais lhes repugna; na verdade estes “aristocratas” têm mais prestígio do que posição, e mais influência do que poder.

As linhagens se separam de seus grupos localizados de parentesco, perambulam, juntam-se a outras pessoas ou outros clãs e se tornam membros de uma nova comunidade. Membros de uma linhagem geram filhos, tornam-se numerosos e espalham-se pela região; as relações íntimas entre eles cessam, vão viver no meio de outros clãs que se relacionam de longe com eles. Moram aí como amigos e aos poucos forjam novas relações agnatas através de casamentos internos e as linhagens se misturam em todas as comunidades locais.

As linhagens de “aristocratas” se separam e os segmentos procuram autonomia tornando-se núcleos de novas aglomerações sociais nas quais são os elementos aristocratas. Todo homem de posição acha que deveria ser um chefe, daí não se conclui que um homem deve ser um aristocrata para ganhar influência sobre seus companheiros de aldeia.

Existe em toda tribo alguma diferença de status mas as pessoas assim diferenciadas não constituem classes.

A aceitação de um membro permanente de uma comunidade como sendo um aristocrata concorda com a tendência geral entre os Nuer segundo a qual a descendência se subordinava à comunidade.

O grau de responsabilidade atribuído a um dano, as possibilidades de indenização oferecidas e o total pago como compensação dependem das relações das pessoas envolvidas na estrutura social. Nisso se baseia o Direito para eles.

As incertezas e as contradições sempre evidentes nas declarações dos Nuer a respeito dos pagamentos de gado de raça como indenização devem ser atribuídas à relatividade do status social, sempre relativo à distância estrutural ente pessoas.

Se uma pessoa estivesse visitando parentes ou afins e fosse morto numa disputa, seus anfitriões se considerariam na obrigação de vingá-lo e, se um membro de outra aldeia o matar, sua comunidade provavelmente não aceitaria esta definição de seu status, pois não se faz distinção entre os membros da própria comunidade com base na descendência em suas relações com outros segmentos políticos. Nas relações políticas, os laços são sempre dominantes e determinam o comportamento.

Os estrangeiros se ligam a um clã dominante de modo que o clã se torna a estrutura do sistema político. Como os Nuer identificam todos os lados sociais numa linguagem de parentesco, está claro que apenas o reconhecimento de laços mútuos de parentesco poderia levar a esse resultado.

Os Nuer estrangeiros não podem ser adotados nas linhagens do clã dominante ou em quaisquer outras linhagens Nuer. Os membros de todas as comunidades locais, enquanto se vêem como segmentos locais, expressam as relações de uns com os outros em função do parentesco. Isso é causado pelos casamentos mútuos.

Os Nuer, em geral, se casam dentro de sua tribo. Não há regras de exogamia baseadas na localização, estas são determinadas por valores de linhagem e parentesco.

As regras Nuer de exogamia rompem a exclusividade dos grupos agnáticos forçando seus membros a se casarem com membros de fora e, assim, a criar novos laços de parentesco. Dado que as regras também proíbem o casamento entre cognatos próximos, uma comunidade local pequena (aldeia) logo se transforma numa rede de laços de parentesco e seus membros são compelidos a procurar companheiros fora dela.

O círculo de relações próximas de parentesco limita-se a um pequeno raio que tende a se tornar cada vez mais restrito e as relações mais distantes à medida que nos aproximamos de sua periferia.

Os Nuer de outros clãs jamais podem identificar-se mais de perto com a linhagem dominante porque, por razões rituais, eles precisam continuar como unidades autônomas, mas politicamente se somam a ela através dessa categoria de parentesco.

Devido as regras exogâmicas, as linhagens são ligadas por vários laços cognatícios e de afinidade. Uma linhagem permanece com um grupo agnático exclusivo apenas em situações rituais. A estrutura agnática da linhagem dominante é um ressaltador somente no plano político.

Em todo segmento tribal pequeno existe uma linhagem do clã dominante da tribo associada a este segmento, e seus membros são juntados à linhagem por adoção, parentesco agnático ou ficções de parentesco.

Os valores de parentesco constituem as normas e sentimentos mais fortes na sociedade Nuer, e todos os inter-relacionamentos sociais tendem a ser expressos em função do parentesco.

A mitologia de clã mais rica é a que ilustra claramente a integração mitológica das linhagens de diferentes origens com o sistema de linhagem dominante numa estrutura política, demonstra como se atribuem valores de parentesco a relações territoriais.

Então, o sistema de linhagens de um clã pode ser considerado apenas até um ponto muito limitado como um registro verdadeiro da descendência. Não só sua profundidade temporal parece ser limitada e fixa, como também a distância entre linhagens colaterais parece ser determinada pela distância política entre as seções com que essas linhagens estão associadas, e pode-se supor que uma linhagem somente persiste enquanto linha distinta de descendência quando é politicamente significativa.

Um a bifurcação de linhagem é o reflexo de uma família polígama.

A unidade territorial está associada à linhagem; o objetivo é alcançar a unidade única do clã. As linhagens são, em número e posição estrutural, estritamente limitadas e controladas pelo sistema de segmentação territorial.

Todo Nuer homem passa da adolescência para a idade adulta, por uma iniciação bastante árdua: sua testa é cortada até o osso com uma pequena faca, e são feitos seis cortes de orelha a orelha. Essas cicatrizes permanecem para o resto da vida, e diz-se que algumas marcas podem ser percebidas até no crânio de um homem morto.

O cerimonial de iniciação é mais complexo, e o sistema etário tem maior importância social entre os Nuer do que entre os outros Nilotas do Sudão. Vários rapazes são iniciados ao mesmo tempo, pois acredita-se que se um rapaz é iniciado sozinho ele ficará isolado e pode morrer. Depois dessa iniciação é mais fácil cuidar deles e dar-lhe a atenção que exigem durante a convalescença. A iniciação pode ocorrer em qualquer estação do ano, mas são mais freqüentes no final da estação da chuva, quando há bastante comida e o vento Norte cicatriza as feridas. Após esta operação, os rapazes vivem em isolamento parcial e estão sujeitos a vários tabus.

O dia que praticam as incisões e no dia final do isolamento, eles fazem sacrifício e há festa, que incluem brincadeiras licenciosas e canções lúbricas. Somente os companheiros etários do pai do iniciado podem freqüentar a festa, os outros ficam a uma certa distância a fim de que não vejam a nudez das mulheres pertencentes ao seu círculo de parentes e de suas sogras.

Os conjuntos etários são organizados de modo independente em cada tribo, esses conjuntos não são organizações militares. Ao entender como é que o fato de pertencer a um conjunto etário determina o comportamento de um homem, primeiro tem-se que entender que não existe educação dirigida ou treinamento moral no procedimento de iniciação. Os guerreiros não podem casar e não gozam de privilégios, nem sofrem restrições diferentes, dos outros homens adultos.

São quatro apenas, os conjuntos que contam e, visto pelo indivíduo, eles se diferem em dois grupos de gerações de iguais e irmãos: mais velhos e pais ou mais moço e filhos.

O sistema de conjunto etário diferencia-se do sistema territorial e de linhagem sob um aspecto importante; dentro do sistema do conjunto etário, a posição de todo homem Nuer é definida estruturalmente em relação aos outros homens Nuer, e sua condição em relação a eles é de mais velhos, igual ou mais moço. É difícil descrever o termo de comportamento, pois as “regras” por eles estabelecidas, não raro, são de natureza muito geral. É possível destacar os seguintes pontos:

  1. Há certas observâncias e impedimento rituais entre membros do mesmo conjunto e também entre os conjuntos. Tem grande importância a segregação dos conjuntos nas festas com sacrifício e a proibição estrita de um membro de um conjunto enterrar um companheiro de idade ou partilhar de carne de animais sacrificadas em sua cerimônia mortuária.
  2. Um homem não pode casar-se ou ter relações sexuais com a filha de um companheiro de idade, ela é sua “filha” também.
  3. Os membros de um mesmo conjunto etário estão num mesmo pé de igualdade; são companheiros e associam-se para o trabalho, para a guerra e em todas as atividades de lazer.
  4. Espera-se que os membros de um conjunto demonstrem respeito pelos membros mais idosos.

Por estrutura social entendem-se relações entre grupos que tem um alto grau de coerência e constância; é também uma organização de grupo. A família não é considerada um grupo estrutural, pois não tem relações mútuas coerentes e constantes como os grupos, e desaparecem com a morte de um membro.

Entre os próprios Nuer a cultura é homogênea e são as relações ecológicas que fundamentalmente determina o tamanho e a distribuição dos segmentos.

Entre os Nuer, os relacionamentos geralmente se expressam em função de parentesco, que tem forte conteúdo emocional, mas viver junto conta mais, pois os laços da comunidade de um modo ou de outro se transformam em laços de parentesco, e o sistema de linhagem é transformado na forma do sistema territorial dentro do qual ele atua.

Comentário de seminário, Antropologia Clássica, ano de 2002:

Evans-Pritchard, E. – Os Nuer, São Paulo, Perspectiva, 1978 - (caps. 4, 5, 6)

3 comentários:

Anônimo disse...

Sou graduando de geografia e também faço parte de um grupo de pesquisa, comandado por um antropólogo, que estuda a informalidade. Recentemente, o professor me pediu que eu fizesse uma resenha de Os nuer, para avaliar o meu desempenho enquanto escritor e acadêmico. Seu texto será de grande ajuda. Você escreve muito bem.
Maurício Alencar

Anônimo disse...

oi como consigo a resenha ou resumo dos Nuer cap 1 exatamente para meus estudos?. Natércia Soares, fortaleza ceará, 26 anos, segundo semestre de ciencias socias. pode enviar se quiser ao meu email nataliecaine@ig.com.br

Anônimo disse...

Oi! Sou Graduanda de antropologia, e sua resenha é exelente, obrigada por compartilhar trabalhos assim...Parabéns!
Flávia cristina