A Revolução Inesperada
“Havia um ar estranho: a revolução inesperada arrastara o adversário, tudo era permitido, a felicidade coletiva era desenfreada.” - Antonio Negri
“1968” foi o ano louco e enigmático do nosso século. Ninguém o previu e muito poucos os que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu. Deu-se uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções. Seu único antepassado foi 1848 quando também uma maré revolucionária - a “ Primavera dos Povos” -, iniciada em Paris em fevereiro, espalhou-se por quase todas as capitais e grandes cidades da Europa, chegando até o Recife no Brasil.
O próprio filósofo Jean-Paul Sartre, presente nos acontecimentos de maio de 1968 em Paris, confessou, dois anos depois, que “ainda estava pensando no que havia acontecido e que não tinha compreendido muito bem: não pude entender o que aqueles jovens queriam... então acompanhei como pude... fui conversar com eles na Sorbone, mas isso não queria dizer nada”.
A dificuldade de interpretar os acontecimentos daquele ano deve-se não só à “múltipla potencialidade do movimento” como a ambigüidade do seu resultado final. A mistura de festa saturnal romana com combates de rua entre estudantes, operários e policiais, fez com que alguns o vissem como “uma revolta comunitária” enquanto que para outros era “a reivindicação de um novo individualismo.”
Tornou-se um ano mítico porque “1968” foi o ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram as sociedades da época de uma maneira irreversível. Seria o marco para os movimentos ecologistas, feministas, das organizações não-governamentais (ONGs) e dos defensores das minorias e dos direitos humanos. Frustrou muita gente também. A não realização dos seus sonhos, “da imaginação chegando ao poder”, fez com que parte da juventude militante daquela época se refugiasse no consumo das drogas ou escolhesse a estrada da violência, da guerrilha e do terrorismo urbano.
“1968” foi também uma reação extremada, juvenil, às pressões de mais de vinte anos de Guerra Fria. Uma rejeição aos processos de manipulação da opinião pública por meio dos mass-midia que atuavam como “aparelhos ideológicos” incutindo os valores do capitalismo, e, simultaneamente, um repúdio “ao socialismo real”, ao marxismo oficial, ortodoxo, vigente no leste Europeu, e entre os PCs europeus ocidentais, vistos como ultrapassados.
Assemelhou-se aquele ano aloucado a um caleidoscópio, para qualquer lado que se girasse novas formas e novas expressões vinha a luz. Foi uma espécie de fissão nuclear espontânea que abalou as instituições e regimes. Uma revolução que não se socorreu de tiros e bombas, mas da pichação, das pedradas, das reuniões de massa, do alto-falante e de muita irreverência. Tudo o que parecia sólido desmanchou-se no ar.
O início de tudo
“Mas quem tomou as grandes decisões em 1968? Os movimentos mais característicos do 68 idealizaram a espontaneidade e se opuseram à liderança, estruturação e estratégia." - Eric Hobsbawn
Desde 1965, a pretexto do incidente do Golfo de Tonquim (que provou-se falso), o presidente norte-americano Lyndon Johnson ordenara o sistemático bombardeio do Vietnã do Norte, bem como o desembarque, no Vietnã do Sul, de um reforço de mais de 300 mil soldados para evitar uma possível vitória dos vietcongs (guerrilheiros comunistas que combatiam o governo sul-vietnamita que era pró-americano). Os Estados Unidos atolavam-se na Guerra do Vietnã.
No dia 30 de janeiro, na celebração do Teth, o Ano Novo vietnamita, os vietcongs, num ataque relâmpago de surpresa, tomaram de assalto 38 cidades sul-vietnamitas, entre elas Hue e Saigon (onde chegaram a ocupar a embaixada dos EUA), provocando uma derrota tática nas forças armadas norte-americanas. Apesar de terem perdido 30 mil homens na operação os vietcongs provaram serem capazes de frustra as expectativas de uma vitória americana.
A partir de então a crescente oposição à guerra dentro dos Estados Unidos quase tornou-se numa aberta insurreição da juventude. A violência dos bombardeios sobre a população civil vietnamita, composta de aldeões paupérrimos, já havia provocado desconfiança em relação a justeza da intervenção no Sudeste da Ásia. Diariamente a televisão americana mostrava imagens dos combates e dos sofrimentos dos soldados e dos civis. Somou-se a isto a visível falta de perspectiva para solucionar o conflito. Era inaceitável que a maior potência do Mundo atacasse um pequeno país camponês do Terceiro Mundo.
A Ofensiva do Ano Teth teve enormes repercussões. O Davi vietcong fizera cambalear o Golias americano. Como o Estados Unidos representava a Lei e a Ordem no mundo do após-guerra, era natural que todas as instituições por ele garantidas ou a ele associadas passassem a ser questionadas. A superpotência fora ferida na Ásia. Era possível abalar, senão pôr abaixo, tudo o que de alguma forma representasse o status quo, o estabelecimento, o regulamento, o conformismo social e sexual, o mesmismo existencial, a vida acadêmica, etc...
Paralelamente à Guerra Vietnamita, na China Popular Mao Tse-tung desencadeara a partir de 1965 a Grande Revolução Cultural Proletária (Wuchanjieji Wenhua Dageming), convocando para grandes manifestações a juventude chinesa. Estudantes, filhos de funcionários, de trabalhadores e de camponeses, na idade dos 14 aos 18 anos, agrupados nas Guardas Vermelhas, tomaram conta das ruas das grandes cidades num protesto-monstro contra os Zou zi Pai, aqueles elementos do partido comunista que, acreditavam eles, tinham simpatias pelo capitalismo e pela burguesia e que se encontravam infiltrados nos aparatos do poder. Mao Tse-tung , em velada luta contra altos setores da hierarquia do Partido Comunista chinês, convocara os jovens para auxiliá-lo a recuperar a autoridade. Para tanto fanatizou-os com a leitura de trechos seus selecionados um pequeno livro: O Livro Vermelho dos pensamentos do Presidente Mao, que passou a ser interpretado com fervor religioso pelos militantes juvenis. Voltando-se contra o passado chinês tradicional, provocaram cenas de vandalismo e intolerância. A imagem de milhares deles marchando e cantando pelas praças e avenidas chinesas, em nome da Revolução, serviu de emulação para que os estudantes ocidentais também viessem a imitá-los quando a ocasião se tornou propícia.
Além da indignação geral provocada pela Guerra Vietnamita e o fascínio pelas multidões juvenis da Revolução Cultural chinesa, também pesou na explosão de 1968 a morte de Che Guevara na Bolívia, ocorrida em outubro de 1967. Seu martírio pela causa revolucionária serviu para que muitos se inspirassem no seu sacrifício. Jovens de todas as partes, especialmente na Europa e na América Latina, tentando atender ao seu apelo para que se formassem em outros lugares do mundo, “dois, três Vietnãs” lançaram-se na vida guerrilheira.
Contestação e contracultura
“Apesar da fraude e da leviandade que embaraçam seus contornos uma nova cultura esta realmente surgindo entre nossa juventude (...) uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos da nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante.” - Theodore Roszack - A Contracultura, 1972
Nenhum outro acontecimento desde a Guerra da Secessão de 1861-65 provocou tamanha divisão na opinião publica norte-americana como o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. A chamada “maioria silenciosa” e os conservadores em geral acreditavam que era uma guerra justa e nobre porque os americanos estavam no Sudeste da Ásia para impedir que seus aliados do Vietnã do Sul sofresse uma agressão comunista.
Era um dos primados da política externa norte-americana, desde a Doutrina Truman de 1947, realizar operações militares para salvar “governos amigos”, como ocorrera na Guerra da Coréia em 1950-53. Logo todo o esforço nacional deveria dirigir-se em apoiar as autoridades e sustentar “nossos rapazes” na guerra que travavam no exterior.
Não foi esse o entendimento da juventude universitária, dos escritores e dos intelectuais. Para eles tudo não passava de um pretexto para a afirmação de uma política de força. Uma grande potência, a maior do mundo, queria impor-se ao povo de um pequeno pais da Ásia, recorrendo a uma argumentação pseudo-humanitária para encobrir os bombardeios, os massacres e outras atrocidades de guerra.
A postura pacifista redundou numa crescente crítica não só à intervenção militar, mas aos valores globais da sociedade americana. Pregaram a desobediência civil (civil desobedience), e, em grandes manifestações publicas, queimavam as convocações para o serviço militar.
Outra forma de contestação foi assumida pelo movimento hippie. Estes eram jovens da mais diversa extração social que ostensivamente vestiam-se de uma maneira chocante para o americano médio. Deixavam crescer barbas e cabelos, vestiam brim e trajes de algodão colorido, decoravam-se com colares, pulseiras, e profusões de anéis. Passaram a viver em bairros separados ou em comunidades rurais. Rejeitando a sociedade de consumo industrial viviam do artesanato e, no campo, da horta. Não mantinham as regras esperadas de comportamento, higiene, nem de acasalamento: “Paz e Amor”(Peace and Love) era o seu lema.
Desenvolveram um universo próprio, uma “vida alternativa”, que infelizmente não resistiu ao convívio com as drogas. Iniciados na marijuana terminaram por mergulhar em drogas mais fortes como o LSD (ácido lisérgico) e outras chamadas psicodélicas. Seus ídolos literários foram o escritor alemão Herman Hesse, cujos livros concentravam-se em histórias orientais de iniciação e abandono à introspecção e à meditação nirvânica, e o poeta Dylan Thomas, um rompedor de regras. Seu mestre pensante foi o psiquiatra Wilhelm Reich que associava a agressividade humana à repressão sexual praticada contra os adolescente e os jovens em geral por adultos que consideravam o sexo pecaminosos e imoral. Reich defendia, paralelo à revolução política, uma Revolução Sexual. A música eleita por eles foi o rock de contestação: Janis Joplin, Jim Morrison, Jimmy Hendrix, Bob Dylan, John Lenon e Joe Cocker foram seu principais expoentes.
Rejeitavam abertamente tudo o que pudesse ser identificado como vindo do “americano médio” porque acreditavam que a essência da agressão ao Vietnã encontrava-se no âmago da sociedade tecnocrática, competitiva, individualista e consumista. Propunham uma contracultura (couterculture). Não formaram um partido político nem desejavam disputar as eleições. Queriam impressionar pelo comportamento, mudar os costumes dos que os cercavam para mudar-lhes a mentalidade.
O apogeu do movimento da contracultura ocorreu no Festival de Woodstock, nas proximidades de Nova Iorque, em agosto de 1969, quando 300 a 500 mil jovens reuniram-se para um encontro de massas para celebrar o rock e manifestar-se pela paz.
A ala moderada do Movimento Negro, por sua vez , perdeu, em 4 de abril de 1968, o seu maior expoente, o pastor Martin Luther King , assassinado em Memphis. Ele que fora contestado por seus métodos pacifistas pelas lideranças mais jovens e radicais, os “Panteras Negras”( Black panthers), inclinava-se contra a Guerra do Vietnã no momento em que foi baleado. King entendia que a luta dos povos do Terceiro Mundo assemelhava-se a dos negros americanos contra a discriminação e o preconceito. Sua morte provocou uma violenta onda de protestos acompanhada de incêndios nos maiores bairros negros em 125 cidades americanas.
A nova esquerda
“....essa oposição luta contra a maioria da população, incluída a classe operária, contra todo o chamado way of life do sistema, contra a onipresente pressão do mesmo e, finalmente, contra o terror que reina fora das metrópoles.” Herbert Marcuse - O Fim da Utopia, 1967
O embasamento teórico do que estava acontecendo e de tudo o que viria ainda a ocorrer encontrou sua melhor exposição no pensamento do filósofo alemão Herbert Marcuse. Exilado nos Estados Unidos desde 1934, ele preocupou-se em entender quais as possibilidades de transformação social numa sociedade opulenta como a norte-americana. Num livro polêmico “A Ideologia da sociedade industrial” (One-Dimensional Man, 1964), Marcuse percebeu que a sociedade unidimensional - ao contrário da bidimensional onde capitalistas opõem-se aos operários -, caracterizava-se por sua capacidade de absorver as classes subalternas tornando-as não-contestadoras. Desta forma a idéia de Marx de que o operariado industrial, o moderno proletariado, seria a força motriz da revolução socialista não se verificava em sociedades do capitalismo tardio como a norte-americana. Nela os trabalhadores eram acomodados, seduzidos pelo consumo e pelos bens materiais.
Assim os agentes da transformação deveriam ser os outsiders, os que estavam fora das benesses, como as minorias étnicas ou os que simplesmente as rejeitavam, como os estudantes e os apoliticos intelectuais beatniks. Deles é que, ainda que inconscientemente, partiria a contestação ao sistema capitalista e a ordem autoritária.
Os militantes dessa Nova Esquerda (New Left) não eram marxistas nem tinham simpatias pelo socialismo. Eram de composição social diversificada, acolhendo gente de todos os estratos sociais. Seus principais representantes não eram políticos, mas poetas e escritores como Allen Ginsburg.
Marcuse, na tradição ideológica da Escola de Frankfurt, via na tecnologia uma forma mais sofisticada de repressão. Ela continuava existindo mesmo em sociedades democráticas, porque as técnicas do mass-midia “de manipulação e controle”, permitiam um policiamento mais eficiente sobre as mentes dos cidadãos. O processo de emancipação das massas no futuro dependia em grande parte não só do movimento político, mas também de uma substancial alteração do comportamento, inclusive ético-sexual. Para tal defendia a “dessublimação controlada” onde ocorreria uma libertação simultânea “ da sexualidade e da agressividade reprimidas.”
Pretendendo inverter a seqüência fixada por Engels, que dizia o socialismo avançar do utópico para o cientifico, Marcuse desejava resgatar o utópico. Entendia ele que graças ao desenvolvimento tecnológico - este era o seu lado positivo -, possibilitava-se hoje atingir-se a utopia (ou o que anteriormente se considerava uma utopia) e implantar uma sociedade solidária e igualitária.
As barricadas de maio
Estudante (observando o recinto): “Para ser bem sincero almejo ir-me embora. Esses muros antigos, ambiente abafado, em nada isto me agrada, estou desanimado. O espaço é muito pouco, estreito, desencanta. Não se vê um jardim, não há nenhuma planta. Velhas colunas, bancos, completo desalento. Aqui se embota o ouvido, a vista e o pensamento.” - Goethe - Fausto, 1808
Em 1965, na periferia da capital francesa, instalou-se Universidade Paris- Nanterre para acolher estudantes que não ingressavam no circuito superior tradicional (Sorbone, Escola Normal, Escola Politécnica, etc..). Em pouco tempo tornou-se um centro de contestação. Em princípios de 1968 os estudantes convidaram o psicanalista Wilhelm Reich para uma palestra, mas as autoridades vetaram-no. A questão sexual voltou a cena quando o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit questionou o Ministro da Educação. As manifestações que se seguiram foram reprimido pela polícia. Em represália os estudantes ocuparam Nanterre em 22 de março. Seus colegas da Sorbone se solidarizaram.
Em 3 de maio a Universidade de Sorbone foi fechada pelas autoridades. O movimento se espalhou. Passeatas estudantis, organizadas pela UNEF (Union nationale des étudiants de France), foram dissolvidas com violência cada vez maior pela CRS, a policia do Presidente De Gaulle. Indignados os estudantes ergueram obstáculos nas ruas centrais de Paris que davam acesso ao Quartier Latin, antigo centro universitário da cidade. A maior batalha deu-se na “noite das barricadas”, em 10 de maio. A essa altura ganharam as simpatias de outros setores sociais: sindicalistas, professores, funcionários, jornaleiros, comerciários, bancários aderiram a causa estudantil. De protesto estudantil contra o autoritarismo e o anacronismo das academias rapidamente transformou-se, com a adesão dos operários, numa contestação política ao regime gaulista.
Paris, com o calçamento revirado, vidraças partidas, postes caídos e carros incendiados, assumiu ares de cidade rebelada. No alto das casas e prédios tremulavam bandeiras negras dos anarquistas. De 18 de maio a 7 de junho, 9 milhões de franceses declararam-se em greve geral. No dia 13 de maio um milhão e duzentos mil marcharam pelas ruas em protesto contra o governo. Liderados por Daniel Cohn-Bendit (Dany le rouge), Alan Geismar e Jacques Sauvageot, os estudantes colocaram em xeque o regime do velho general.
De Gaulle, em 29 de maio, chegou a viajar para as bases francesas na Alemanha para obter apoio do Gen. Massu afim de uma possível intervenção militar. Enquanto isso delegados governamentais negociavam em Grenelle com os sindicatos uma série de melhorias para retirar os trabalhadores da greve e afastá-los dos jovens radicais. Os comunistas por sua vez negaram-se a associar-se a qualquer tentativa de assaltar o poder, o que fez J.P.Sartre denunciá-los dizendo que “Os Comunistas temem a revolução.”
De Gaulle recuperado propôs uma solução eleitoral e graças a ela, com o apoio de uma imensa manifestação da “maioria silenciosa” pela ordem, conseguiu evitar um motim social. Obteve uma significativa vitória nas eleições de 23-30 de junho. A partir de então o movimento estudantil refluiu. A tormenta passara, mas o General De Gaulle enfraquecido renunciou a presidência da Republica em 27 de abril de 1969, depois de tê-la ocupado por dez anos. Um jornalista francês Pierre Viansson-Ponté, num artigo irônico e profético escrito em março, alertou que “os franceses morrem de tédio” por estarem de fora dos grandes acontecimentos que ocorriam no mundo de então. Em maio o tédio transformou-se em furor e virou a França de cabeça para baixo.
A Primavera de Praga
“Um Socialismo de rosto humano” - Alexander Dubcek, 1968
Em 5 de abril de 1968 o povo tcheco tomou-se de surpresa quando soube dos principais pontos do novo Programa de Ação do PC tchecoslovaco. Fora uma elaboração de um grupo de jovens intelectuais comunistas que ascenderam pela mão do novo secretário-geral Alexander Dubcek, indicado para a liderança em janeiro daquele ano. Dubcek um completo desconhecido decidira-se a fazer uma reforma profunda na estrutura política do pais. Imaginara desestalinizá-lo definitivamente, removendo os derradeiros vestígios do autoritarismo e do despotismo que ele considerava aberrações do sistema socialista.
Apesar da desestalinização ter-se iniciado no XXº Congresso do PCURSS, em 1956, a Tchecoslováquia ainda era governada por antigos dirigentes identificados com a ortodoxia. Ainda viviam sob a sombra do que Jean-Paul Sartre chamou de “o fantasma de Stalin”. Dubcek achou que era o momento de “dar uma face humana ao socialismo”.
Além de prometer uma federalização efetiva, assegurava uma revisão constitucional que garantisse os direitos civis e as liberdades do cidadão. Entre elas a liberdade de imprensa e a livre organização partidária, o que implicava no fim do monopólio do partido comunista. Todos os perseguidos pelo regime seriam reabilitados e reintegrados. Doravante a Assembléia Nacional multipartidária é quem controlaria o governo e não mais o partido comunista, que também seria reformado e democratizado. Uma onda de alegria inundou o país. Chamou-se o movimento, merecidamente, de “ A Primavera de Praga”.
De todos os lados explodiram manifestações em favor da rápida democratização. Em junho de 1968, um texto de “Duas Mil Palavras” saiu publicado na Gazeta Literária (Liternární Listy), redigido por Ludvik Vaculik, com centenas de assinaturas de personalidades de todos setores sociais, pedindo a Dubcek que acelerasse o processo. Acreditava que seria possível transitar pacificamente de um regime comunista ortodoxo para uma social-democracia ocidentalizada. Dubcek tentava provar a possibilidade do convívio entre uma economia coletivizada com a mais ampla liberdade democrática.
O mundo olhava para Praga com apreensão. O que fariam os soviéticos e os seus vizinhos comunistas? As liberdades conquistadas em poucos dias pelo povo tcheco eram inadmissíveis para as velhas lideranças das “Democracias Populares”. Se elas vingassem em Praga eles teriam que também liberalizar os seus regimes. Os soviéticos por sua vez temiam as conseqüências geopolíticas. Uma Tchecoslováquia social-democrata e independente significava sua saída do Pacto de Varsóvia, o sistema defensivo anti-OTAN montado pela URSS em 1955. Uma brecha em sua muralha seria aberta pela defecção de Dubcek.
Então, numa operação militar de surpresa, as tropas do Pacto de Varsóvia lideradas pelos tanques russos entraram em Praga no dia 20 de agosto de 1968. A “Primavera de Praga” sucumbia perante a força bruta. Sepultaram naquela momento qualquer perspectiva do socialismo poder conviver com um regime de liberdade. Dubcek foi levado a Moscou e depois destituído. Cancelaram-se as reformas , mas elas lançaram a semente do que vinte anos depois seria adotado pela própria hierarquia soviética representada pela política da glasnost de Michail Gorbachov. Como um toque pessoal e trágico, em protesto contra a supressão das liberdades recém-conquistadas, o jovem Jan Palach incinerou-se numa praça de Praga em 16 de janeiro de 1969.
Ao redor do mundo
“We shall fight/ We will win/ Paris, London, Rome, Berlin..” (lutaremos, venceremos, Paris, etc...) Slogan dos contestadores ingleses, 1968.
Na Alemanha a conflagração estudantil deu-se a partir do atentado sofrido pelo líder estudantil Rudi Dutschke. Em Berlim, Frankfurt e demais cidades universitárias as marchas de protesto redundaram em grandes batalhas campais contra a policia. O fracasso que se seguiu fez com que muitos militantes resolvessem ingressar na RAF (Rotte Armee Faccion), também conhecido pelo nome dos seus dirigentes como o Grupo Baader-Meinhoff que, nos anos 70, tentaram manter um clima revolucionário na Alemanha Ocidental através de atentados terroristas e assassinatos seletivos.
Praticamente a mesma trajetória vamos encontrar na Itália, onde os estudantes rompidos com o Partido Comunista Italiano, a quem acusavam de conciliar com a burguesia, aderiram à violência revolucionária com a fundação das Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse) que chegaram a seqüestrar e matar o primeiro-ministro Aldo Moro em 1978.
Pode-se dizer que os enfrentamentos generalizados que caracterizaram boa parte dos anos 70, (ativada pelos grupos Brigate rosse, Baader-Meinhoff, Black Panthers, ERP, Montoneros, Tupamaros, Var-Palmares, Exército Vermelho japonês, etc.) foram subproduto das esperanças e das energias despertadas em choque com a frustração que se seguiu. Na América Latina o resultado foi mais trágico porque o movimento estudantil não se deparou com regimes democráticos mas sim com regimes militares.
O mais violento acontecimento no nosso continente foi o massacre dos estudantes - 26 mortos, 300 feridos e mais de mil aprisionados - na praça de Tlatelolco na Cidade do México em outubro de 1968, por ordens de Luis Echeverria, ministro do presidente Dias Ordaz. A título de comparação, em Paris apenas um estudante morreu nos distúrbios e a ação oficial mais violenta foi a expulsão do país de Daniel Cohn-Bendit que era de nacionalidade alemã.
A rebelião no Brasil
Três meses antes de ocorrer o levante dos estudantes parisienses, no Rio de Janeiro em 28 de março de 1968, um secundarista carioca chamado Edson Luís foi morto numa operação policial de repressão a um protesto em frente ao restaurante universitário “Calabouço”. Deu-se uma comoção nacional. O enterro fez-se acompanhar por uma multidão de 50 mil pessoas, estando presentes inúmeros intelectuais e artistas.
A partir daquele momento o Brasil entraria nos dez meses mais tensos e convulsionados da sua história do após-guerra. A insatisfação da juventude universitária com o Regime Militar de 1964, recebeu adesão de escritores e gente do teatro e do cinema perseguidos pela censura. As principais capitais do país, principalmente o Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, em pouco tempo se tornaram praça de guerra onde estudantes e policiais se enfrentavam quase que diariamente. Cada ação repressora mais excitava a juventude à oposição. Naquela altura apenas os estudantes enfrentavam o regime pois os lideres civis da Frente Ampla (Carlos Lacerda, Jucelino Kubischek e João Goulart, que estava exilado) haviam sido cassados.
Em 26 de junho daquele ano 100 mil pessoas - a Passeata dos Cem Mil - marcharam pelas ruas do Rio de Janeiro exigindo abrandamento da repressão, o fim da censura e a redemocratização do pais. A novidade foi a presença de religiosos, padres e freiras, que aderiram aos protestos. A juventude da época dividiu-se entre os “conscientes”, nos politizados que participavam das passeatas e dos protestos, e os “alienados” que não se inclinavam por ideologias ou pela política.
Em apoio ao regime surgiu o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) de extrema-direita que se especializou em atacar peças de teatro e em espancar atores e músicos considerados subversivos.
Em outubro, ao organizar clandestinamente o 30º congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), o movimento estudantil praticamente se suicidou. Descobertos em Ibiuna no interior de São Paulo, 1200 foram presos. A liderança inteira, entre eles Vladimir Palmeira, caiu em mãos da policia numa só operação. Como coroamento do desastre, o regime militar, sob chefia do Gen. Costa e Silva, decretou, em 13 de dezembro, o AI-5 (Ato Institucional nº 5).
Fechou-se o Congresso, prenderam-se milhares de oposicionista e suprimiram-se as liberdades civis que ainda restavam. A partir de então muitos jovens aderiram a luta armada entrando para organizações clandestinas tais como a ALN (Ação de Libertação Nacional), a VAR-Palmares ou dezenas de outras restantes. Por volta de 1972 o regime militar esmagara todas elas, fazendo com que os sobreviventes se exilassem ou fossem condenados a longas penas de prisão.
Pode-se dizer que a rebelião estudantil, se por um lado precipitou a abolição das liberdades marcando a transição do Regime Militar para a Ditadura Militar, por outro anunciou para o futuro o Movimento das Diretas-já, de 1984, que pôs término aos 20 anos de autoritarismo.
Bibliografia
- Caderno 2 - Dany, o verde; O Estado de São Paulo, 1º de abril de 1998
- Caderno de Cultura - Maio de 1968; Zero Hora, 2 de maio de 1998
- Cohen-Solal, Annie - Sartre: 1905-1980, Editora LP&M, Porto Alegre, 1986
- L’Histoire - Mai-68; la révolution introuvable L’Histoire nº 221,Paris, maio de 1998
- Mais - A última utopia Folha de São Paulo, 5º Caderno, 10 de maio de 1998
- Marcuse, Herbert - A Ideologia da Sociedade Industrial, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967
- Marcuse, Herbert - O Fim da Utopia, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,1969
- Roszack, Theodore - A Contracultura, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1972
- Ventura, Zuenir - 1968, o ano que não acabou Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988
Texto utilizado por mim como apoio de estudo para o vestibular. Retirado da internet.